Em Escrevivendo o leitor-internauta poderá ler, ou reler, contos e crônicas de minha autoria, sobretudo os já publicados nos meus livros: "Um lugar muito lá,", "Vento nas Casuarinas", "Menina com flor", "O infinitivo e outros males", e "Onde dormem as nuvens".
Além desses, publiquei o infantil "Toda criança merece ter um bicho".
A cada duas semanas, um texto será colocado e ficará aberto à leitura, às criticas, às sugestões e, quem sabe, aos elogios dos leitores.

domingo, 4 de novembro de 2012

Dia de chuva e frio

                                  O relógio de ponto continua a bater, segundo a segundo, feito um coração degenerado que se alimentasse não de vida, mas de morte.

      O dia despertou chuvoso e frio. A manhã que se vê do outro lado da vidraça embaçada é feia, úmida e cinza. Não sei o que vocês pensam da chuva. Não da exagerada, de temporal e enchentes, que dessa ninguém gosta mesmo. Mas da chuvinha fina e persistente, que às vezes dura uma semana ou mais, encharca os sapatos, alaga o coração de uma melancolia boba e prolongada como a própria chuva.
      Acho que ninguém morre de amores por um tempo assim. Os comerciantes lamentam que pingue menos dinheiro em suas caixas; os estudantes protestam porque a água não é tanta que justifique a falta às aulas, mas é bastante para umedecer-lhes o uniforme; as mães suspiram diante das pegadas que partem da porta em todas as direções da casa; as lavadeiras contemplam desoladas as roupas que não secam, não secam, meu Deus! As crianças querem sair para jogar bola, para brincar de pique e são obrigadas a inventar com que se divertir dentro de casa mesmo, mas sem sujar nada, sem quebrar nada, sem fazer barulho nenhum, como se, de repente, por inexplicável castigo, tivessem virado adultos. Nos cinemas, pouca gente, os bancos da praça vazios. Das estátuas, escorrem deselegantes fios de água, sem que elas percam a austeridade que as faz estátuas. O rio passa orgulhoso, supondo-se grande coisa, porque inchou um palmo de ontem para hoje.
      A gente acorda e ouve o tamborilar dos pingos que caem metodicamente.
      Num dia desses, quem tem vontade de sair para viver? Num dia como esse, de chuva e frio, era bom que a gente pudesse ficar em casa, como animal no ninho, sem pensar em nada sério, sem pensar no mundo que, à nossa revelia, continua girando feito um pião louco, cuja única função parece ser a de divertir a molecada. Sem pensar em nós mesmos, em nossos dramas pessoais, tão insignificantes dentro do vasto drama humano, mas tão grande em relação à nossa pequenez.
       Bom dia para a gente se meter debaixo das cobertas e ficar olhando figuras imaginárias desenhadas no teto, ouvir um bom disco, ler um bom livro, tomar uns drinques — poucos — sentindo devagar o tão raramente experimentado gosto da bebida. Dormir mais do que o habitual e, se tiver sorte, sonhar com a pessoa amada, crianças brincando, longas planícies, por onde correm cavalos selvagens. Renunciar a todos os planos para salvar o mundo — o que não é fácil-, ou para salvar a si mesmo — o que é mais difícil ainda.
      Da janela, contemplar a gota suicida que percorre longo espaço através da vidraça, até que encontra outra gota, junta-se a ela e se desfaz. Ver os cães que passam de cabeça baixa e ter pena deles, mas uma pena leve, sem sofrimento, que eles próprios parecem felizes — molhados e famintos, mas sem dono. Surpreender-se diante do verde subitamente verde nos morros em frente, lavados folha por folha. Telefonar para amigos, sem ter nada para dizer, apenas porque se gosta deles. Lembrar de uma pessoa que há tanto tempo não vemos e à qual agora amamos como a quem já morreu ou nunca existiu. Escrever uma carta (ainda se escrevem cartas?) para alguém distante, cuja saudade estava guardada num cartão de Natal que resolvemos reler.
      Sim, seria bom... Mas temos que sair para tocar a vida em frente, quando antes queríamos estancar a vida por um dia, para mergulharmos em nós mesmos. O rádio nos informa que é hora de trabalhar, o apito da fábrica soa, indiferente à nossa preguiça, a cidade começa a agitar-se, sem tomar conhecimento dos nossos sonhos, de nossas saudades, de nossas ilusões. O relógio de ponto continua a bater, segundo a segundo, feito um coração degenerado que se alimentasse não de vida, mas de morte. O que nos resta é encarar nossa figura abatida no espelho, enquanto fazemos a barba ou passamos baton. E à medida que nos aprontamos para ir viver uma vida que não queríamos para hoje, ir descobrindo — ou inventando — razões para sair de casa, apesar da chuva e do frio, apesar de nos sentirmos tão melancolicamente filosóficos.
      E ainda que continue chovendo, acreditar no sol, acreditar firmemente no sol. Não há chuva que dure para sempre nem sol que nunca retorne.

Do livro "Vento nas casuarinas"

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O assalto

Não olhava para trás, mas, pelos gritos que ouvia, tinha como certo que se parasse para fungar, uma vez que fosse, seria alcançado pelo porrete.

Eulália Coelho saía do banco certa de que ninguém a assaltaria, apesar da bolsa ostensiva. Sacara todo o dinheiro para comprar dólares e estava vendo o mundo todo verde. Grávida é sagrada. Alguém seria capaz de arrancar-lhe a bolsa que levava sobre a barriga bojuda? Não, dizia ela em sua maternal inocência. Sim, dizia Pé-de-Chinelo, que a vigiava do outro lado da rua. Pé-de-Chinelo era bem capaz disso e de coisa pior. Ainda mais num dia desgraceira daquele, em que só conseguira surrupiar um relógio na banca do camelô, e olhe lá. Todo mundo cheio de cuidados, dificultando-lhe o exercício de sua profissão de assaltante. Enfim, o dia despencava péssimo, até que Pé-de-Chinelo viu Eulália Coelho abrindo a porta do banco, com o ar inocente de uma criança, como se o bebê esperasse a mãe, e não o contrário.
Chinelo, como o tratavam os íntimos, mal passou por Eulália e já estava longe, com a bolsa na mão. Alguém socorre mulher grávida gritando “Ai, meu Deus! Ai, meu Deus!”? Uns não ligaram, outros ficaram com medo, a maioria simplesmente custou a entender o que estava acontecendo. Você seria capaz de correr atrás do ladrão? Pois Monteiro era capaz, tanto que correu. Descendente em linha direta de Dom Quixote, apiedou-se da linda donzela. Meio barrigudo, mas ainda com um restinho do fôlego que esbanjava quando era beque do Arco-Íris Foot-Ball e Regatas, time do Morro da Cruz. Eulália ficou lá atrás, gritando e chorando. Sem brincadeira: parecia que ia ter um filho. As pessoas começaram a se juntar em volta dela.
Monteiro não custou muito a alcançar Pé-de-Chinelo. Quando o ladrão estava à distância de um braço, Monteiro deu-lhe um tamanho soco pelas costas que o infeliz imediatamente cuspiu duas coisas: pelas mãos, a bolsa que tinha roubado; pela boca, um aparelho com três dentes, servicinho de primeira, obra do prático em Odontologia Waldemar Corega. Pé-de-Chinelo aproveitou o impulso do socaço nas costas e pegou novo embalo. Monteiro abaixou e foi catando os objetos espalhados, a começar por dois pacotes de dinheiro. Guardou o batom, a caneta esferográfica, um santinho de Nossa Senhora do Bom Parto. Mas não chegou a juntar os documentos. Lá vinha a pequena, mas furiosa multidão, apontando para ele e gritando: “Olha ali o ladrão! Olha ali o ladrão!” Monteiro ia justamente se explicar quando, com o mesmo olhar de esguelha com que nos tempos do Arco-Íris vigiava dois atacantes ao mesmo tempo, pôde observar que um dos justiceiros trazia nas mãos um pedaço de pau que, numa hora daquelas, bem poderia funcionar como um porrete.
Foi o suficiente para Monteiro compreender que a hora não era boa para diálogos diplomáticos. Levantou-se num salto e saiu correndo como se fosse impedir o gol do adversário em jogo de decisão. Não olhava para trás, mas, pelos gritos que ouvia, tinha como certo que se parasse para fungar, uma vez que fosse, seria alcançado pelo porrete. Ao fim de alguns minutos, constatou que o ar que começava a rarear ao seu redor e não mais lhe chegava aos pulmões.
Nem entendeu o que estava acontecendo quando foi puxado pelo colarinho e caiu num beco estreito, entre duas casas velhas. Ao se levantar, deu de cara com ninguém menos do que Pé-de-Chinelo, em pessoa. O marginal esticou o indicador sobre os lábios, ordenando silêncio. Na calçada, a gritaria denunciava a passagem da milícia popular. Monteiro fez que sim com a cabeça e ficou quieto como uma pedra, mudo como goleiro na hora da cobrança do pênalti.
Pé-de-Chinelo tomou-lhe a bolsa da mão, jogou tudo fora, exceto os dois maços de dinheiro. Sendo, como de fato era, ladrão à moda antiga, homem de justiça e de direito, entregou um dos maços a Monteiro. Com um movimento do queixo, indicou uma saída estreita pelo outro lado.
Cada um enfiou sua grana no bolso e tomou seu rumo.

Do livro “Um lugar muito lá”


sábado, 4 de agosto de 2012



Disconcordância verbal

 Vossa Excelência errou duas vezes: o verbo vai para o plural, e a mãe é a sua!

      Conhecem a crônica “Eloquência singular”, em que Fernando Sabino mostra um orador atrapalhado com a concordância entre o verbo e o sujeito “um dos que”?
Pois não é que eu tive a ideia de fazer algo semelhante? A seguir, o elevado debate que travaram os senadores Osterbaldo Patty Faria e Abdula Drão.

      Abdula Drão: Senhor Presidente, a imprensa tem noticiado que os Estados Unidos enviou ao Brasil...
      Patty Faria: Um aparte, digníssimo colega!
     Abdula Drão: Mas eu ainda não falei nada e já vem o nobre filhote da ditadura me cassar a palavra!
     Patty Faria: De fato, tenho denunciado nesta Casa todos os desmandos cometidos por Vossa Excelência no exercício do mandato que o povo em má ora lhe confiou. Mas essa tribuna, onde os baianos falaram pela voz de Rui Barbosa e...
     Abdula Drão: O digno colega devia estudar História com o mesmo empenho que usa para enriquecer ilicitamente: quando fundaram Brasília, Rui Barbosa já estava fazendo discurso no céu há quase um século. Portanto, nunca subiu a esta tribuna.
     Patty Faria: ... e  Antonio Carlos Magalhães, não pode tolerar os atentados de Vossa Excelência contra o idioma  pátrio, substrato de nossa nacionalidade, última flor de lótus, como disse o poeta Castro Bilac.
     Abdula Drão: Ora, ora, vejam quem fala! E os atentados de Vossa Excelência contra a Superintendência da Exploração do Minério Baiano?  O Brasil inteiro sabe que, na presidência daquele órgão, Vossa Excelência tomou a palavra exploração ao pé da letra. A SEMIBA foi à falência, mas Vossa Excelência e seus capangas enriqueceram! Senhor Presidente, retomando meu raciocínio inicial, volto ao fato de os Estados Unidos mandar...
     Patty Faria: Um aparte! Senhor Presidente: qualquer menino de 5ª série na cidade de Tatuapé Gigante sabe que o correto é: “Os Estados Unidos enviaram” ... E olha que o ensino em Tatuapé Gigante não é lá essas coisas. No último provão nacional, só não foi o último porque Muriçoca do Vento Forte, com perdão de Vossa Excelência, obteve a lanterninha.
     O Presidente: Devo esclarecer ao ilustre representante do povo mineiro que muito me honra ser cidadão muriçoquense. Quanto ao mau resultado a que Vossa Excelência alude, cabe esclarecer que o Ministério da Educação nos mandou a prova errada: nossos meninos do ginásio fizeram a prova dos rapazes de engenharia. A lanterna cabe a Tatuapé Gigante.
     Abdula Drão: Não lhe nego, senador Patty Faria, algum poliglotismo, infelizmente adquirido no convívio com contrabandistas internacionais. Nem por isso pode Vossa Excelência meter-se a professor de gramática. Estados Unidos é um país, é ou não é? Como se pode falar dele no plural?  O honrado tribuno deve estar confundindo com as duas Alemanhas que, aliás, agora é uma... são uma... Ora, A Alemanha é a Alemanha, não tem outra!
     Patty Faria: O nobre parlamentar, cujas ligações com os interesses comerciais americanos são notórios, devia saber que "Os Estados Unidos" levam o verbo para o plural. Por exemplo: “Os Estados Unidos financiaram a campanha de "certo" membro desta Casa”, “Os Estados Unidos corromperam "alguém" que hoje os defende nesta Casa”...
     Abdula Drão: Os Estados Unidos (***) a mãe de um nobre senador que se mete a ensinar gramática aos colegas!
     Patty Faria: Vossa Excelência errou duas vezes: o verbo vai para o plural, e a mãe é a sua!
    O Presidente: Senhores Senadores! Honrou-me esta Casa com a possibilidade de presidir a sessão de hoje...
     Abdula Drão: Também, com o plenário vazio! Vossa Excelência está sentado aí porque era o mais velho dos 5 senadores presentes!
     O presidente: Pois muito me honra presidir a sessão com 4 colegas...
     Patty Faria: Três! O senador Tertúlio Vesgo retirou-se.
     Abdula Drão:  E o senador Antinoco Mendaz está dormindo.
    O Presidente: Então, qual a razão da briga de Vossas Excelências? Nem jornalista tem hoje.
    Patty Faria: A gente tem que mostrar serviço, Senhor Presidente. É tirar cópia e mandar para os eleitores.
    Abdula Drão: É isso aí, conspícuo Senhor Presidente!
    O Presidente: Então, vamos fazer o seguinte. Vamos tomar um cafezinho no meu gabinete. Meu secretário escreve um discurso pra cada um e acaba-se a briga.
    Patty Faria: Aprovado, Senhor Presidente!
    Abdula Drão: Aprovado, Senhor Presidente!
    O Presidente: Então vamos ao café. Está encerrada a sessão!

Do livro: Onde dormem as nuvens

quinta-feira, 21 de junho de 2012

O homem e seu cão


...até que finalmente alcancem o castelo onde reinam,
senhores de todo abandono e de todas as necessidades.

        Quase todo dia o vejo. Estou caminhando, que é o jeito mais natural e saudável de cansar o corpo e descansar a cabeça, atividades tão mais necessárias quanto mais a vida atual nos leva a fazer o contrário. Nossas cabeças vivem cheias de mil contas, tantos problemas, fatos a lembrar, lembranças a esquecer. Já o corpo, este acomoda-se na cadeira, derrama-se na poltrona, estica-se na cama. E vai enrugando, endurecendo, avolumando-se além do que recomendam a estética e a saúde.
      Também ele caminha, mas num outro ritmo. Melhor dizer que arrasta os pés, calçada afora, como quem não tem pressa de chegar, nem aonde chegar.  Dois caminhantes solitários. Eu, porque gosto de caminhar sozinho, apenas eu e Deus, sendo perfeitamente compreensível que Deus, de vez em quando, apresse o passo, para  livrar-se da má companhia. Ele, com seu cachorro, um vira-lata lento e sujo, à semelhança do seu dono. Mas são unidíssimos, e é bem capaz de também Deus não se apartar deles, que Deus tem um gosto estranho para escolher companhias, é só olhar com quem Jesus Cristo andou andando aqui na Terra.
      É uma dupla interessante, difícil dizer qual dos dois mais bêbado. Por onde o homem zonzeia, zonzeia o cão. E se o homem para um instante, sentado no meio-fio, ou deitado num canto de calçada, ali também descansa seu fiel companheiro, o Sancho Pança desse Dom Quixote sem lança e sem armadura, sem lenço e sem documento. De onde vêm, para onde retornam? Em quantas batalhas foram derrotados durante o dia que termina?  Pois é certo que perderam todas e, se a cada manhã acordam e saem novamente pela cidade, é porque viver é preciso, vencer não é possível. Rolaram pelas ruas o dia inteiro, sem destino, alimentando-se de nuvens e de migalhas que caem das mesas alheias.  Agora que anoiteceu, as nuvens se esconderam e as migalhas se acabaram, voltam ao lar. O lar é algum barraco no meio do mato ou, apenas e simplesmente, o meio do mato. Apesar disso, voltam. Tropeçando, um passo à frente e outro atrás, até que finalmente alcancem o castelo onde reinam, senhores de todo abandono e de todas as necessidades.
       Ao passar por mim, o homem não deixa de me cumprimentar. Não fosse movimento tão brusco desequilibrá-lo, talvez tirasse o chapéu em sinal de respeito à minha pessoa. Mas nem por isso creio que me dê especial importância, que sua saudação seja prova de distinta consideração. Deve fazer o mesmo com todas as pessoas que encontra, ainda que muitas delas nem sequer o olhem. Da mesma forma o cachorro abana o rabo, sem distinguir os moleques que lhe atiram pedras ou as senhoras que se afastam assustadas. Também não se alonga em cerimoniosos “boas noites, senhor!” Contenta-se em resmungar “ei!”, “epa!” ou, quando mais loquaz, “salve!” E até isso lhe custa algum esforço, pelo que deixa para os fracos latidos do seu companheiro a tarefa de concluir o cumprimento. De minha parte, devolvo sempre na mesma moeda: “salve!”
       Mas, nesse fugaz instante em que nos saudamos, saldando a dívida da mínima civilidade, me dou conta de que esse outro caminhante não é apenas um boneco que se mexe, desengonçado. É uma pessoa. Como disse o poeta sobre o seringueiro que dorme no fundo da floresta, “Esse homem é brasileiro que nem eu”.   E me pergunto como e por que um ser humano se desvia a tal ponto de seu destino, e que destino tem a sociedade que, com desprezo, ou no mínimo com indiferença, o deixa passar a caminho de lugar nenhum, até o dia em que ele não mais passará. Contudo, não nos iludamos: outro ninguém tomará o seu lugar nessa jornada tanto mais gritante quanto mais silenciosa.
       E lá vou eu, caminhando, e lá vamos nós, seguindo em frente, enquanto o homem e seu cachorro ficam para atrás, perdidos no meio da rua, no meio da noite, no meio da vida.

Do livro: “Menina com flor”

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Almoço em escola de samba


O diretor social tremeu nas bases. 
Como ser diplomático às 2 da tarde, 
num domingo de fome, sol, cerveja e caipirinha?


            Imagine almoço em escola de samba. Brota aquela fome secular, que vem do tempo da escravidão, percorre todos os cantos do país, atravessa toda a história de um povo em constante estado de inanição. Almoço em escola de samba é fome hereditária, coletiva. Cada um dos desnutridos olha para as caras esfomeadas da mesa ao lado e sente a própria fome crescer na contemplação da fome alheia. De repente, o barracão inteiro é um estômago vazio, são entranhas que roncam furiosas.
            Pois bem, trata-se justamente de um almoço em escola de samba. Domingo de sol, caipirinha e cerveja despencando em cascata desde nove horas e já são quase doze. O objetivo é juntar grana e pagar as costureiras. Só porque no ano passado ficaram no ora-veja, elas agora não querem entregar as fantasias a não ser à vista do dinheiro. No afã de alcançar tão nobre ideal, venderam-se pra mais de 500 convites. O presidente da entidade chegou a nomear um Secretário Extraordinário para Assuntos Gastronômicos. A escolha recaiu sobre um associado que, por mais de 20 anos, administrara um bar famoso pela qualidade de seus salgadinhos. Verdade que cada salgadinho era consumido juntamente com três dedos de cachaça, de modo que teria sido mais prudente relativizar a opinião dos fregueses.
            Mas em nada disso se pensou na hora e o novo diretor logo assumiu o comando da operação, estabelecendo as quantidades de ingredientes necessários para alimentar a multidão. Houve grandes debates a respeito de qual seria o prato do dia. O assunto foi posto em votação, em reunião de diretoria, tendo-se chegado aos seguintes resultados: angu à baiana: 3 votos; feijoada: 4 votos; estrogonofe de carne: 6 votos.
            Vitorioso no pleito democrático, o estrogonofe logo se tornou a grande expectativa do bairro. No dia do evento, bancos, cadeiras e caixotes foram espremidos na quadra, pratos e talheres cada um trouxe os seus, copos eram de papelão. Meio-dia e pouco começa a distribuição do rango. Às 13 horas já o estrogonofe rareava, o arroz encolhia-se no fundo dos panelões. Às treze e trinta de estrogonofe metade do povo só havia sentido o cheiro. O presidente subiu ao palco e pediu paciência à multidão, garantindo que já-já vai sair o melhor estrogonofe que vocês comeram na vida. Enquanto a boia não chegava, o jeito era ir enganando com mais batida e cerveja. Às 14 horas, o povão começou a bater com os talheres no prato e o barulho cresceu tanto que mais parecia um ensaio geral para o desfile.
           A primeira-dama, vendo a sinuca em que o marido estava metido, e lembrando-se do antigo juramento — na alegria e na dor, na saúde e na doença —, tentou falar ao microfone. Mal pronunciara a saudação: “Minha gente amiga...” já do meio da horda veio a resposta: “sai fora pelancuda!”, logo seguida por outra: “Chama o chifrudo do teu marido!” Assustada, a digna senhora retirou-se para os bastidores, onde o alto comando se rendia à evidência de que não tinha como aplacar a sanha da turba famélica.
         Após sucessivas deliberações, em que vários escolhidos declinaram da honraria, o diretor social foi indicado para apaziguar a corja. Antes dele, já abrira mão da incumbência o tesoureiro (“Eu sou cobrador, vou ser mal recebido”), o assessor de imprensa (“Meu coração não vai aguentar tanta emoção”) e o mestre-sala (“Hoje estou completamente afônico”). Mas a vaidade do diretor social não resistiu ao elogio que lhe fizeram: “Você é um diplomata, o homem certo para os momentos de crise!” Assim adulado, lá se foi o homem, pegou o microfone, pediu um minuto da vossa preciosa atenção e pigarreou. Vista do alto do palco, a plebe mais parecia uma assembleia de vampiros, olhos arregalados, os dentes à mostra, fazendo com os talheres o barulho de mil zabumbas.
         O diretor social tremeu nas bases. Como ser diplomático às 2 da tarde, num domingo de fome, sol, cerveja e caipirinha? “Vocês querem estrogonofe?”, perguntou ele, da maneira mais delicada que pode. “Queremos!” rugiu o populacho em resposta. E foi aí que o diretor social mostrou porque tinha adquirido o apelido de Itamarati: “uma coisa é você quiserem, outra coisa e vocês comerem, macacada!”
         O primeiro prato bateu na testa do locutor oficial, o segundo atingiu a porta-bandeira, embora esta tentasse se proteger com uma panela vazia. O resumo da história é o seguinte: as costureiras não receberam, mas a escola também não desfilou. E o presidente até hoje anda querendo saber de sua digna esposa por que o chamaram de chifrudo.


Do livro “Vento nas casuarinas”

Boas respostas


São artistas naquela triste especialidade de que fala o poeta 
grego Arquíloco de Paros:
“Tenho uma grande arte/ Eu firo duramente aqueles que me ferem 


                Famoso ator inglês interpretava Ricardo III e, a certa altura da peça de Shakespeare e da História da Inglaterra, o rei está perdendo a batalha e começa a gritar “Meu reino por um cavalo!”, para que alguém traga a montaria que lhe permita perseguir seu adversário: “Meu reino por um cavalo!” Da plateia, um engraçadinho perguntou: “Um burro serve?” O ator interrompeu a apresentação e respondeu, com fleuma britânica: “Serve. Pode subir”.
               A historinha acima me fez lembrar de uma deputada, também inglesa, que possuía uma língua terrível. Durante comício numa zona rural, um eleitor, querendo insinuar que ela não entendia nada da vida no campo, perguntou-lhe quantos dedos tinha um porco, tendo obtido por resposta esta delicadeza: “Homem, tire as botas e conte!” Pois essa senhora se deu muito mal quando resolveu provocar Winston Churchill, dizendo-lhe: “Se o senhor fosse meu marido, eu lhe dava veneno”. Serenamente, ele retrucou: “Se a senhora fosse minha mulher, eu tomava”.
               No Brasil, Carlos Lacerda deixou fama pela sua eloquência, pela sua capacidade, mas também pela sua dureza com os adversários. Chamado por um deles de “ladrão da honra alheia”, deu uma resposta igualmente impiedosa: “Então o senhor pode dormir tranquilo, pois nada tem que eu lhe possa roubar”. Outro político, Milton Campos, ao contrário, era um manso e, ao morrer, mereceu de Carlos Drummond de Andrade este elogio incomparável: “Foi o homem que todos gostaríamos de ter sido”. Governador de Minas, Mílton Campos recebeu de um secretário a sugestão de que mandasse um trem com soldados para reprimir operários em greve por falta de pagamento. “Não seria melhor mandar um trem com o dinheiro?”, perguntou o governador.
                As pessoas que têm respostas rápidas e inteligentes despertam admiração, mas também um certo temor, pois possuem uma qualidade que pode torná-las cruéis. Assemelham-se às vezes a uma rosa em que o espinho é maior do que a flor. Por uma boa frase, são capazes de sacrificar amizades, envenenar ambientes, machucar seus semelhantes. São artistas naquela triste especialidade de que fala o poeta grego Arquíloco de Paros: “Tenho uma grande arte/ Eu firo duramente aqueles que me ferem”. Ignoram a poética recomendação para que sejam como o sândalo que perfuma o machado que o fere. Esmagam o sândalo e entortam o machado. Nós outros, mortais comuns, reconhecemos a inteligência dessas pessoas, mas não gostamos de viver próximos a elas. Porque é uma lastimável verdade que nem sempre podemos amar a quem admiramos.
              Certa vez alguém me pediu que escrevesse sobre a beleza feminina (a fim de que certa pessoa lesse e se identificasse), mas eu me lembrei do Pe. Antônio Vieira: “Que coisa é a formosura senão uma caveira bem vestida?” e tanto pessimismo me desanimou. Talvez por isso não tenha conseguido atender o pedido, embora seja verdade que, como disse Wyndham Lewis, “Escrever é fácil. Você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto. No meio você coloca as ideias”.
                  Em geral, a dificuldade está justamente em colocar as ideias. Nesse caso, uma solução possível é começar com uma letra maiúscula (digamos um F), e preencher o vazio com frases alheias. O ponto final é fácil, até eu sei fazer, às vezes até exagero, usando um ponto de exclamação. 
                  Ou vários !!!!!!!


Adaptado do livro “Um lugar muito lá!"

terça-feira, 8 de maio de 2012

CONDÔMINOS DA ETERNIDADE

CONDÔMINOS DA ETERNIDADE


O ser humano é capaz de sobreviver a tudo, com exceção da morte. E se alguma coisa sobrevive à morte, há de ser a nossa vaidade.
           
            Saiu publicada nos jornais a convocação dos “senhores condôminos” para assembleia geral dos proprietários de um cemitério. A princípio, pensei que o edital se dirigisse aos próprios moradores locais, como é de costume nas reuniões de condomínio. Mas estranhei que a primeira convocação estivesse prevista para vinte horas e a segunda, para vinte e trinta, “com qualquer número de participantes”. É que, mesmo não sendo autoridade no assunto, na minha adolescência vi filmes de terror o suficiente para saber que os habitantes das cidades dos pés juntos preferem realizar seus encontros de madrugada. Certamente a razão disso é que, no escuro da noite fechada, quando a própria lua tira um cochilo, menos visível fica o estrago que a morte fez na aparência de cada um. Do mesmo modo agem os vivos, que também não gostam de ficar por aí expondo suas feiúras. O ser humano é capaz de sobreviver a tudo, com exceção da morte. E se alguma coisa sobrevive à morte, há de ser a nossa vaidade.
            Não menor espanto me causou saber que o evento estava programado para acontecer no próprio habitat do presidente da Associação. Fiquei me perguntando se o povo que já fixou residência definitiva no Além ainda precisa de associação, com hierarquia e tudo, presidente inclusive.  Podia ter-se dado o caso de o síndico abrir as lápides de sua residência para receber os vizinhos,  mas é bem improvável, visto que as mulheres, mesmo as defuntas, não gostam que os maridos levem para casa assuntos de trabalho.
            Tais foram os fatos que me levaram a refletir sobre o edital e a lê-lo com mais atenção.  Acabei concluindo que a reunião destinava-se aos que por enquanto, e muito provisoriamente, moram do lado de cá. Àqueles que são proprietários de terreno ou túmulo no cemitério, embora ainda não usufruam desse privilégio.  Que tudo neste mundo tem dono sabia eu, desde os três anos, quando me apoderei do pedaço de bolo que um  amiguinho devorava. Foi o que bastou para que ele, convicto de que a propriedade privada é coisa sagrada, me atirasse na cabeça o primeiro objeto que sua mão alcançou, o qual vinha a ser uma imagem de São Francisco de Assis, com pombinhos no ombro e tudo mais a que têm direito as representações desse santo. Logo São Francisco de Assis, tão desapegado dos bens terrenos, se prestar a um papel desses contra mim!
            Mas me surpreendeu saber que até os cemitérios podem ter donos vivos. Não sei se o investimento oferece alta rentabilidade, mas certamente possui algumas vantagens. A principal é que os moradores nunca reclamam, quer do aluguel, quer do atendimento. Bem razão tem aquela agência funerária que incentiva a população a comprar antecipadamente o próprio funeral e já no seu slogan garante a qualidade dos serviços que presta: “Até hoje, nenhum freguês voltou para reclamar!” Quincas berro Dágua, personagem de Jorge Amado, com a autoridade de quem morreu duas vezes, afiançava: “Cada qual cuide de seu enterro, impossível não há”.
            Aliás, a literatura nos ensina várias maneiras de aproveitar a morte.  A melhor talvez seja a de Brás Cubas, que se dá ao luxo da falar o que bem pensa de si e dos outros, porque, conforme diz em suas memórias póstumas, “a franqueza é a primeira virtude de um defunto”, ou ainda: “Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados”.  
            Bocage, poeta português, pedia em soneto: “Deus... ó Deus, quando a morte à luz me roube,/ Ganhe um momento o que perderam anos,/ Saiba morrer o que viver não soube!” Tentemos saber viver e, uma vez que tantas vezes falhamos nessa tarefa vital, ao menos não nos afastemos daquele que é o senhor da vida e da morte, para que seja ele a nos receber quando finalmente nos tornarmos, também nós,  “senhores condôminos” no condomínio da eternidade.
           
Do livro “Onde dormem as nuvens”



HISTÓRIAS DE FUTEBOL - O CARTOLA

Histórias de futebol

I - O cartola

Dois dias depois, estava eu vendo o treino do meu amado Cruz Dourada, quando o sujeito sentou ao meu lado

Levantei para pegar o revólver, mas nem acabei de esticar as pernas, porque não tinha revólver. Como já estava a meio caminho, dei-lhe um sopataço por cima da orelha que o desgraçado voou mais alto do que passarinho assustado. E muito mais ia apanhar se não desse marcha à ré e saísse correndo. De vergonha nenhuma na cara, ainda gritou da porta: “Depois a gente conversa melhor, doutor!” Logo pra mim, que malemale terminei a 3ª série nas mãos de dona Zenilda Damasceno. Mas uma coisa: trinta anos de futebol a limpo. Em muito alambrado tinha eu espremido a cara, acompanhado times pequenos, médios e quase grandes antes de chegar à Federação e ao Departamento de Arbitragem. Dinheiro, do meu bolso. Até aluguel paguei para muito Pelé que vinha salvar o time, deixava a gente na lanterninha e ia embora. Nunca que levei um centavo, deveras. Orgulho, tinha: trinta anos de honesto, eu mesmo não conhecia caso igual. Agora vinha aquele tereré, cheio de dedos: “O doutor merece uma compensação, tantos anos de sacrifícios...” Deve ter ficado uma semana com o ouvido sem funcionar!

Eis porém que se o Timboense chegasse à primeira divisão, eu levava coisa de dez mil dólares. Quando passou a raiva, vi que não era pouco: dava pra tomar uns uísques. Dois dias depois, estava eu vendo o treino do meu amado Cruz Dourada, quando o sujeito sentou ao meu lado. Ao sair, tinha esquecido um embrulho perto de mim. Apanhei o embrulho e fui embora. Achei que era uma safadeza o Timboense ficar de fora. Um timinho tão esforçado bem que merecia uma chance.

Do livro "Um lugar muito lá"

REDAÇÃO INFANTIL

REDAÇÃO INFANTIL


Perguntei ao Tetéo se ele se lembrava de onde a gente estava antes de mamãe ser a mãe da gente

Mamãe é muito boa. Até o pai do Tiago acha. Outro dia eu vi ele olhando pra ela e  falando pro pai do Mateus: “É muito boa essa mulher, hem?!” Aí o pai do Mateus falou assim: “Um avião!” A professora ensinou que um homem chamado Santos du Monte inventou o avião. Se eu fosse inventor, inventava minha mãe, mas Deus inventou ela antes de mim.  Eu acho mamãe boa porque ela faz bolo de chocolate pra mim e quando eu faço xixi na cama ela não conta pra ninguém. Mamãe foi eleita a mãe mais bonita da minha turma. Cada mãe dos meus coleguinhas teve um voto. Mamãe teve dois. Eu estudo na mesma sala do meu irmão gêmeo, o Tetéo. Eu falei com papai que queria casar com vovó. Ele disse: “Você não pode casar com minha mãe!” Não sei por quê. Ele não casou com a minha? Outro dia o Maurinho me chamou de filho da Pluta. Bobo! Eu já ensinei a ele que o nome de mamãe não é Pluta, é Marisa. Ana Luísa tem duas mães. A mãe da semana é casada com o pai da Marta. A mãe da sexta-feira é que é casada com o pai da Ana Luísa. Não sei se é bom ter duas mães. Eu só tenho uma e às vezes ela me dá um tapinha. Eu não choro, que é pra ela não ficar triste, mas ela fica triste assim mesmo e começa a chorar. Depois me dá sorvete de morango. Ontem acordei e fui ao quarto de papai e mamãe.  Eles estavam na cama brincando de brigar. Não sei por que eles tiram a roupa pra brincar. Quando eu quero brincar, eles logo falam: “Primeiro põe a roupa”. Mamãe me ensina muita coisa. Ela me ensinou a palavra nunca. Nunca é entre de manhã e de tarde. De manhã eu perguntei: “Quando você vai me dar um patinete?” Ela falou: “Nunca”. De tarde ela trouxe um patinete pra mim. Papai me falou que quando ele casou com mamãe ela ainda não era minha mãe. Ué, num entendi nada! Como é que pode ela não ter sido sempre minha mãe? “Nem do Teteó?” “Também não”. Perguntei ao Tetéo se ele lembrava de onde a gente estava antes de mamãe ser a mãe da gente. Ele disse que já ouviu mamãe dizer que a gente morava no sonho dela. Tenho vontade de conhecer esse lugar, mas acho que é muito longe. A gente nunca foi lá. A gente vai muito à praia, mas Teteó vomita o carro todo. Mamãe reclama que na praia papai fica o dia inteiro com os amigos e volta pra casa na maior água. Também, com aquela água toda que tem no mar! Semana que vem vou fazer 7 anos. Papai diz que quando eu e Teteó nascemos, mamãe já tinha 30 anos. Agora ela tem 28. A moça da loja perguntou a idade dela, ela falou 28. Tem coisa que eu não entendo. Vovó disse que mamãe vai pedir outro neném a Papai do Céu. Num sei por que ela falou outro. Mamãe já teve neném antes? Eu não me lembro. Se mamãe me perguntasse, eu falava pra ela deixar o neném pra lá e pedir um carro a Papai do Céu, já que o papai aqui de casa diz que não tem dinheiro pra comprar. Às vezes, se Papai do Céu desse o carro, papai mesmo arrumava o neném. Mas adulto é gente complicada, nunca pede opinião. Se papai e mamãe me ouvissem, a vida ficava bem mais fácil aqui em casa!

 Do livro "Onde dormem as nuvens"

sábado, 11 de fevereiro de 2012

ASSALTO

ASSALTO

Aliás, vou te contar: meu sonho de criança era ser professor.  Desanimei por causa do salário e acabei no ramo dos assaltos.

            Sob muitos pontos de vista, considero-me um brasileiro atípico.  Por exemplo: nunca fui assaltado. Verdade que quase não saio de nossa cidade, onde os ladrões, se os há, devem  conhecer a minha situação financeira o bastante para  saber que pouco lucro alcançariam me assaltando. E quando vou a alguma metrópole, sou o perfeito provinciano assustado com a cidade grande, pelo que, se alguém me olha, só pode é ficar com pena.  Se algum ladrão chegou a enxergar em mim um cliente em potencial, deve ter ouvido de um colega de trabalho mais experiente a famosa frase de Jeca Tatu: “Não paga a pena!”, e me deixado passar a salvo.
            Não que eu ache graça nesse negócio de assalto. Sei de casos em que pessoas, até famílias inteiras, passaram por grandes sofrimentos nas mãos de bandidos.  E quantas vezes sabemos pela imprensa de histórias que terminaram em tragédia, marginais  que mataram  por causa de um tênis, de uns poucos trocados que a vítima levava no bolso.
            Mas, já dizia o velho Shakespeare, tudo está bem quando termina bem. E eu sei de pelo menos dois assaltos que chegaram a um final feliz, e até mesmo divertido, graças, por um lado, à serenidade do assaltado e, por outro, à boa índole do assaltante.
   Uma de minhas tias mora no Rio de Janeiro e adquiriu grande know-how em matéria de assaltos a ônibus. Na condição de assaltada, é bom esclarecer, antes que vocês comecem a falar mal de minha família.  Da última vez que estive com ela, fiquei sabendo de sua mais recente aventura do gênero:
            - Mal o sujeito entrou no ônibus, eu vi que boa coisa ele não era. Só em bater os olhos, já estou reconhecendo: esse é bandido. Fico até sem jeito de falar, as pessoas pensam que é mentira, mas já fui assaltada 11 vezes na condução do trabalho para casa. Com a tarimba que fui adquirindo, nem me apavoro mais.
            - Ele foi entrando, o ar mais inocente do mundo. Se estendesse a mão, ninguém lhe negaria um trocado. Fui logo escondendo o relógio e a aliança. Dito e feito: com tanto lugar vago, o cara veio sentar logo do meu lado.
            - Tia, passa a bolsa e as joia rapidin´ e sem fazer presepada!
            - Olhei pra cara dele e fui me explicando: “Ô sobrinho, escuta só: com esse já são 11 os assaltos que sofro nessa linha. Você acha certo? Não é querer ensinar padre a rezar missa, mas você e seus colegas precisam variar a freguesia. Além disso, pode crer, eu também ando numa pior.  Na bolsa tem uns trocados e remédio pra pressão.  Você tem pressão alta? Aposto que não tem, estou vendo que você é cabeça fresca. Assaltar passageiro de subúrbio não dá lucro não, meu filho! Vamos fazer o seguinte: me deixa sossegada e espera outro ônibus, tá bom?
            E termina, numa boa:
            - Ele resmungou “fica pra próxima, tia” e saltou no ponto seguinte. Francamente, nesse negócio de assalto a ônibus eu tenho mais experiência que a maioria dos assaltantes!
            O outro é o caso do professor que foi participar de um congresso lá mesmo no Rio e, terminado o evento, ficou no ponto esperando condução. Como ainda não tinha anoitecido, resolveu arriscar-se. Encostou no poste, rezando para que o ônibus não demorasse. Antes do ônibus, porém, chegou o ladrão, que, sem mais delongas, entrou no assunto, posto que ladrão não é manicure nem  barbeiro, pra ficar de conversa fiada com o freguês:
            - E aí, chefia, entrega a bolsa e a carteira.  Aproveita e passa a aliança e o relógio, que é pra tu ficar mais leve!
            - Ô, companheiro, não me queira mal, mas na bolsa só tem livro. Dinheiro só o do ônibus, se o senhor levar vou ter que ir a pé pra rodoviária.  Não faça uma coisa dessas com um modesto professor! Olha aqui minha carteirinha do MEC!
            -Professor?! Putisgrila! Urubu quando tá de azar o de baixo faz no de cima. Professor! Era o que me faltava! Aposto que o amigo tava ali na faculdade ouvindo lero.  E essa livrarada toda aí! Não me serve pra nada! Ó, dessa vez vou aliviar pro teu lado. Isso aqui é área da pesada, tu vai é acabar sendo assaltado. Vou ficar consigo pra lhe dar uma garantia, até teu ônibus chegar.  Sorte tua, que eu sou fã de professor.  Aliás, vou te contar: meu sonho de criança era ser professor.  Desanimei por causa do salário e acabei no ramo dos assaltos. Toma aqui um trocado pra passagem e vê se não dá bobeira de novo.  Ó, lá vem teu ônibus. Vai com Deus.  E te cuida, colega!