Em Escrevivendo o leitor-internauta poderá ler, ou reler, contos e crônicas de minha autoria, sobretudo os já publicados nos meus livros: "Um lugar muito lá,", "Vento nas Casuarinas", "Menina com flor", "O infinitivo e outros males", e "Onde dormem as nuvens".
Além desses, publiquei o infantil "Toda criança merece ter um bicho".
A cada duas semanas, um texto será colocado e ficará aberto à leitura, às criticas, às sugestões e, quem sabe, aos elogios dos leitores.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

O homem e seu cão


...até que finalmente alcancem o castelo onde reinam,
senhores de todo abandono e de todas as necessidades.

        Quase todo dia o vejo. Estou caminhando, que é o jeito mais natural e saudável de cansar o corpo e descansar a cabeça, atividades tão mais necessárias quanto mais a vida atual nos leva a fazer o contrário. Nossas cabeças vivem cheias de mil contas, tantos problemas, fatos a lembrar, lembranças a esquecer. Já o corpo, este acomoda-se na cadeira, derrama-se na poltrona, estica-se na cama. E vai enrugando, endurecendo, avolumando-se além do que recomendam a estética e a saúde.
      Também ele caminha, mas num outro ritmo. Melhor dizer que arrasta os pés, calçada afora, como quem não tem pressa de chegar, nem aonde chegar.  Dois caminhantes solitários. Eu, porque gosto de caminhar sozinho, apenas eu e Deus, sendo perfeitamente compreensível que Deus, de vez em quando, apresse o passo, para  livrar-se da má companhia. Ele, com seu cachorro, um vira-lata lento e sujo, à semelhança do seu dono. Mas são unidíssimos, e é bem capaz de também Deus não se apartar deles, que Deus tem um gosto estranho para escolher companhias, é só olhar com quem Jesus Cristo andou andando aqui na Terra.
      É uma dupla interessante, difícil dizer qual dos dois mais bêbado. Por onde o homem zonzeia, zonzeia o cão. E se o homem para um instante, sentado no meio-fio, ou deitado num canto de calçada, ali também descansa seu fiel companheiro, o Sancho Pança desse Dom Quixote sem lança e sem armadura, sem lenço e sem documento. De onde vêm, para onde retornam? Em quantas batalhas foram derrotados durante o dia que termina?  Pois é certo que perderam todas e, se a cada manhã acordam e saem novamente pela cidade, é porque viver é preciso, vencer não é possível. Rolaram pelas ruas o dia inteiro, sem destino, alimentando-se de nuvens e de migalhas que caem das mesas alheias.  Agora que anoiteceu, as nuvens se esconderam e as migalhas se acabaram, voltam ao lar. O lar é algum barraco no meio do mato ou, apenas e simplesmente, o meio do mato. Apesar disso, voltam. Tropeçando, um passo à frente e outro atrás, até que finalmente alcancem o castelo onde reinam, senhores de todo abandono e de todas as necessidades.
       Ao passar por mim, o homem não deixa de me cumprimentar. Não fosse movimento tão brusco desequilibrá-lo, talvez tirasse o chapéu em sinal de respeito à minha pessoa. Mas nem por isso creio que me dê especial importância, que sua saudação seja prova de distinta consideração. Deve fazer o mesmo com todas as pessoas que encontra, ainda que muitas delas nem sequer o olhem. Da mesma forma o cachorro abana o rabo, sem distinguir os moleques que lhe atiram pedras ou as senhoras que se afastam assustadas. Também não se alonga em cerimoniosos “boas noites, senhor!” Contenta-se em resmungar “ei!”, “epa!” ou, quando mais loquaz, “salve!” E até isso lhe custa algum esforço, pelo que deixa para os fracos latidos do seu companheiro a tarefa de concluir o cumprimento. De minha parte, devolvo sempre na mesma moeda: “salve!”
       Mas, nesse fugaz instante em que nos saudamos, saldando a dívida da mínima civilidade, me dou conta de que esse outro caminhante não é apenas um boneco que se mexe, desengonçado. É uma pessoa. Como disse o poeta sobre o seringueiro que dorme no fundo da floresta, “Esse homem é brasileiro que nem eu”.   E me pergunto como e por que um ser humano se desvia a tal ponto de seu destino, e que destino tem a sociedade que, com desprezo, ou no mínimo com indiferença, o deixa passar a caminho de lugar nenhum, até o dia em que ele não mais passará. Contudo, não nos iludamos: outro ninguém tomará o seu lugar nessa jornada tanto mais gritante quanto mais silenciosa.
       E lá vou eu, caminhando, e lá vamos nós, seguindo em frente, enquanto o homem e seu cachorro ficam para atrás, perdidos no meio da rua, no meio da noite, no meio da vida.

Do livro: “Menina com flor”

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