Em Escrevivendo o leitor-internauta poderá ler, ou reler, contos e crônicas de minha autoria, sobretudo os já publicados nos meus livros: "Um lugar muito lá,", "Vento nas Casuarinas", "Menina com flor", "O infinitivo e outros males", e "Onde dormem as nuvens".
Além desses, publiquei o infantil "Toda criança merece ter um bicho".
A cada duas semanas, um texto será colocado e ficará aberto à leitura, às criticas, às sugestões e, quem sabe, aos elogios dos leitores.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

‘TÁ MUITO BOM

Robério José Canto

A moça acaba sumindo no meio do povo, como açúcar
que se dissolvesse na massa do bolo.
 

          Os dois respeitáveis senhores viajam lado a lado, mas, pelo visto, não se conhecem.  Cada um vai mais afundado do que o outro, tanto em seus santos pensamentos quanto no assento do ônibus.  De suas idades, diga-se apenas que aparentam estar naquele ponto da caminhada em que se tem mais passado para contar do que futuro para viver.  Também não se pode dizer que estejam caindo aos pedaços e, aliás, um deles leva uma bolsa de compras que muito garoto de 50 anos não conseguiria levantar. O outro é um negro forte, com uns poucos fios de cabelos brancos, mas não parece ter chegado aos 90, embora a sabedoria popular nos afiance que “negro quanto pinta, três vezes trinta” ( talvez hoje nem se use mais essa expressão, que é antiga, do tempo em que sutiã se chamava porta-seios. Tudo muda, envelhece, sai de moda, mesmo as palavras e até, ou sobretudo, as pessoas).
          Um deles vai olhando pela janela o movimento lá fora. De repente, retorna de si para o mundo, e a primeira cara que vê é a do companheiro de banco.  Com um levantar de queixo, mostra-lhe uma jovem que vai passando na calçada.  Trata-se de um belo exemplar da espécie, uma obra-prima da natureza, dessas criaturas em que cada parte do corpo parece estar na medida certa, na mais exata proporção. Tão bonita que o trânsito só não parou para vê-la porque o trânsito já estava parado mesmo há muito tempo.   Então, que melhor programa poderia haver para os passageiros do que contemplá-la, enquanto ela não cometesse o ato cruel e desumano de dobrar a esquina ou de esconder- se numa loja?
           O homem da bolsa de compras, que tinha sido o primeiro a avistá-la, virou-se para o vizinho e comentou, entre religioso e mundano: “Deus é grande... ter feito um monumento desses!”  O negro fez que sim com a cabeça e, ainda que sorrisse, parecia ter uma lágrima  à beira dos olhos: “Não é mais pra nós... a idade... nem é bom pensar nessas coisas”, comentou baixinho, como  se revelasse um doloroso segredo.  Baixou sobre eles uma cumplicidade inocente, como a que deve envolver dois soldados que, em pleno campo de batalha, sentindo-se exaustos de tanto lutar, encostam-se numa velha árvore, jogam as armas no chão e resolvem deixar que outros menos cansados lutem em seu lugar.
           O homem das compras, no entanto, não se entrega inteiramente. “Ainda dá pra olhar, tá muito bom...”, diz ele. O trânsito desengarrafa, o ônibus avança, a moça acaba sumindo no meio do povo, como açúcar que se dissolvesse na massa do bolo.  Não está mais à vista, mas seu gosto permanece.
           E permanece o que tanto pode ser o conformismo otimista quanto o otimismo conformista do velho passageiro: “Ainda dá pra olhar, tá muito bom...” E, já que somos todos passageiros, já que cada geração é apenas um breve momento na eternidade das gerações que se sucedem no Tempo, talvez devamos mesmo aprender a lição de que, apesar dos pesares, ainda tá muito bom... Vale a pena passar pela vida, apenas para ver a vida passar, somente para ver a moça passar.

Do livro: “O infinitivo e outros males”