Em Escrevivendo o leitor-internauta poderá ler, ou reler, contos e crônicas de minha autoria, sobretudo os já publicados nos meus livros: "Um lugar muito lá,", "Vento nas Casuarinas", "Menina com flor", "O infinitivo e outros males", e "Onde dormem as nuvens".
Além desses, publiquei o infantil "Toda criança merece ter um bicho".
A cada duas semanas, um texto será colocado e ficará aberto à leitura, às criticas, às sugestões e, quem sabe, aos elogios dos leitores.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O GRANDE MISTÉRIO

O GRANDE MISTÉRIO

Um militar presente ordenou que as crianças se retirassem, a coisa ia ficar feia de se ver, avisou, montado em sua experiência de muitas batalhas nunca disputadas.


      Quando Afonso chegou, já havia dois. Olhos espetados no alto. Os dois como quem espera o aparecimento do carro divino visto pelo profeta Ezequiel, a queda de um disco-voador ou, pelo menos, a vinda do Super-Homem em pessoa. Teve vontade de perguntar o que procuravam no alto do edifício em frente ou nas nuvens, mais adiante. Calou-se, porém, ao perceber a concentração em que estavam os dois. Talvez se tratasse de qualquer coisa estranha de repente surgida no céu, pensou, e resolveu vigiar também.

      Dali a pouco um mulato também parou, com sua pesada pasta. Olhou para o alto e, menos discreto, perguntou: Que que foi? Mas sem dirigir a pergunta a nenhum dos três em particular. O quinto a chegar foi um molecote com uma bandeja de pasteis. O mais certo é que tenha parado para oferecer sua mercadoria, mas logo espichou o pescoço e puxou pela manga do mulato: Quequié? — quis saber. Parece que alguém vai se jogar lá de cima, respondeu o outro, apontando para o edifício, sinceras rugas preocupadas no alto da testa.

      O pequeno vendedor perscrutou as nuvens, cobriu os olhos com as mãos encardidas para protegê-los de um resto de solzinho que se acabava por trás das montanhas e gritou: Olha lá, eu vi! Deve ser um avião, completou uma senhora grávida e grave. Avião rápido assim nunca vi, isso é mais é coisa de marciano, replicou o jornaleiro, que saíra de sua banca e também olhava o céu com ar guerreiro. Diz que houve um crime nos sexto andar, explicava uma adolescente para o senhor de óculos que aportara uns minutos antes. Um baixinho de bigode, com cara de professor, começou a explicar, como quem dá aula: Segundo farta documentação da NASA e outros órgãos ligados às pesquisas espaciais, a existência de objetos voadores não-identificados... mas não concluiu sua lição, porque um vereador lhe tomara o lugar no bolo, valendo-se de sua autoridade legislativa e de algumas cotoveladas.

      Um dos sujeitos que estavam ali antes de Afonso, rapazola com roupa de motoqueiro, nem mexia um músculo, apenas suspirava fundo, os olhos vidrados no infinito. O outro torceu a cabeça para trás e, na condição de observador mais antigo, comunicou à massa reunida à sua volta: Parece que vão tirar o cadáver agora. Ao ouvir isso uma lourinha agarrou-se ao vendedor de pasteis, mas, tendo percebido pelo olfato o erro de pessoa, virou-se para o outro lado e abraçou o namorado, soluçando.

      Alguns estudantes acabaram de encher a calçada, agora toda a tomada de gente, desde a beirada da rua até a entrada da loja, lá atrás. Todo mundo de queixo levantado, cada um querendo ver melhor do que o outro. Um militar presente ordenou que as crianças se retirassem, a coisa ia ficar feia de se ver, avisou, montado em sua experiência de muitas batalhas nunca disputadas. Mas ninguém lhe deu atenção. Até agora não saiu ninguém do prédio, informou uma voz perdida no meio do povo. Um dos estudantes respondeu com ar de desprezo: Só pode ser que a polícia interditou o prédio, né, cara?

      Nesse exato momento, parou em frente um Fusca da polícia, de onde saíram dois guardas. Um disco-voador saindo e entrando atrás das montanhas, o gay Dodozinho se apressou em esclarecer, ciente do direito natural dos dois recém-chegados às informações. Um deles, mal saiu do carro, sentenciou: Que disco, que nada, só pode ser algum avião desgovernado. Soltando fumaça daquele jeito?, atreveu-se a discordar uma estudante.

      Três mendigos, interrompendo a sua faina, vieram verificar com os próprios olhos. Um deles, cego de nascença, queria porque queria apostar que no alto da montanha havia, sim, mas um grupo de excursionistas. De repente acercou-se do grupo um casal de namorados, ambos com o olhar pra lá de Marrakesh e, ainda que mal pudessem levantar as cabeças, acrescentaram sua explicação: Qual é? É tudo estrela caindo, maravilha, beleza pura, gentes! Chuva de estrelas! É agora, a mulher tá saindo! gritou o engraxate. E, de fato, uma senhora acabara de sair do prédio, mas, vendo a multidão em frente, juntou-se a ela e ficou a olhar para o alto. E eu sei de nada! foi tudo que respondeu ao policial que tentou interrogá-la.

      O empurra-empurra era grande. Afonso já estava pensando em desistir quando uma janela se abriu no 5º andar, do outro lado da rua. Apareceu uma jovem na moldura, balançou a mão de um lado para outro, como a dizer que não. O rapaz com roupa de motoqueiro deu um soco no ar, falou um palavrão e foi-se embora. O grupo foi então se dispersando, cada um tomando seu caminho, sem que o disco-voador pousasse, sem que nenhum crime fosse apurado, sem que, afinal, o mundo se acabasse.
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Do livro “Vento nas casuarinas (com o título "O fim do mundo")













sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Na praia


Um casal de namorados se abraça, se beija, se penteia e despenteia,  incendeia a areia, a praia arde ao sol do meio-dia.

      Olhando o mar. Vai e volta, incessantemente, como se fosse... como se fosse o mar. A que mais se pode compará-lo? De repente, suas ondas contidas respiram mais fundo, tomam novo fôlego e vêm passar nos meus pés a língua gelada. O inverno estreou há pouco nos calendários do Brasil e a água já está fria, embora este seja um dos cantos mais quentes do país.
     Imerso em tanta beleza, eu me pergunto se nós, seres que se dizem humanos, temos o direito de poluir essa paisagem com a nossa presença, se temos o direito de pisar nessa areia, tão branca que mais parece uma camada de finíssimo talco, suavemente espalhada sobre o corpo da Terra. Como resposta, a natureza apenas exibe o quanto a temos ferido: sobre o verde irisado, boiam manchas escuras, murchas flores, frascos, feitiços, falecidas falenas. Ainda assim, ela não perde a majestade.   Um passante murmura, mais para si mesmo do que para mim: “Na minha terra o mar é escuro”. Pois aqui ele é assim, camaleônico: o sol penetra nas dobras de sua superfície e matiza o azul de verde, com laivos dourados.
     Afasto os olhos do mar e vejo uma criança que tenta alcançar o outro lado do mundo, cavando um buraco na areia. A pazinha vai fundo, mais fundo, e o Japão nunca chega.  A mãe levanta-se da cadeira e vem explicar à filha que os sonhos são assim mesmo: cavamos, cavamos, sem jamais chegar a realizá-los plenamente. Nem por isso eles deixam de valer a pena. Muitas vezes, mais vale sonhar um sonho do que realizá-lo.
     A garotinha sai correndo e, visto daqui, seu maiô vermelho parece uma flor exótica que o vento sopra por cima da areia. Logo ela pula em direção aos braços do pai. Ele a levanta e então a menina se transforma numa pipa que começa a alçar voo. Braços abertos, aberto o coração, o sorriso flutuando sobre a cabeça do homem que ergue para o mundo o troféu de sua vida.
     Mas nem tudo são flores. Também temos picolé, sorvete, cocada, redes do Ceará, cerveja gelada. Miríades de ofertas.  Para colocá-las a nosso alcance, meninos que deveriam estar na escola, ou brincando nas águas. Mulheres encanecidas de tanto trabalho, escurecidas de tanto andar de uma ponta a outra do sol. E mais os homens humildes, que nos agradecem se lhes permitimos recolher as latas de refrigerantes vazias, como se não fosse deles o favor, ao nos livrarem do lixo que acumulamos em volta de nós. 
     Aos poucos, a praia vai se enchendo. Duas adolescentes passam e, por meio de palavras, gestos e risos, contam inutilidades preciosas, banalidades urgentes, segredos que – juram por Deus! - hão de ficar para sempre apenas entre elas e os demais habitantes do planeta. Um casal de namorados se abraça, se beija, se penteia e despenteia,  incendeia a areia, a praia arde ao sol do meio-dia. Com ar exigente, as mulheres vigiam os filhos, pensando talvez no futuro que eles terão. Os homens vigiam as pernas femininas que desfilam, mas é melhor não adivinhar o que estarão pensando esses senhores de ar inocente.
    O espetáculo é variado, é um texto escrito no ar. Sei o quanto ele ficará empobrecido quando eu finalmente puder colocá-lo no papel. Penso em como seria bom se não precisássemos das palavras, bastando ver e sentir as coisas para poder comunicá-las. O mergulho de um pássaro me tira dessas reflexões e assim me quedo, mais uma vez, simplesmente olhando o mar.

Do Livro “Menina com flor”

Para ganhar um livro do autor, entre em “comentários”, informe seu nome e como pode ser feito contato com você.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Entra na Fila!

Entra na fila!
                        
                    Bom, pra Argentina a gente perde até no futebol, é ou não é? Quá! quá! quá!  Essa foi boa, hein? 

- A senhora é dona Ângela?
- Qual o assunto, senhor?
- Por favor, eu queria...
- Entra naquela fila ali.
- Mas eu só queria...
- Mas é naquela fila ali, faz favor. Se o senhor preferir, volta amanhã às dez. A agência abre às onze.  Vai ter menos gente.
- O problema é que eu...
- O senhor dá licença.  O próximo!...

- É nessa fila aqui que...
- Desculpe, mas não é comigo não.  Fala com aquele moço ali, ó!  Ele informa o senhor.
- Mas a funcionária daquela outra mesa me mandou...
- Aí já é com o gerente.
- Onde que eu posso achar o gerente?
- Agora ele tá ocupado. O senhor tem conta com a gente?  O senhor é VIP, Especial ou comum?
- Pode deixar.  Onde é a fila dos “saldo zero”?
- O caso do senhor deve ser naquela fila que tá fazendo volta lá atrás do segundo balcão.  Mas é rapidinho.  Enquanto isso vai lendo esse folheto.  Se o senhor quiser fazer alguma aplicação, meu nome é Valente, fala comigo, hein!  E obrigado pela preferência!

- Por favor, o Valente me mandou falar com o senhor...
- Ô Valente!  Pô, vê se resolve as coisas, cara!  Tudo eu, tudo eu!  O senhor queria o que mesmo?
- É o seguinte. Essa carta aqui...
- Xi, rapaz, troço complicado isso aí... Fala com o gerente, que ele resolve.
- Quem é o gerente?
- D. Neide! Seu Mauro foi almoçar, não foi?
- É. E depois vai visitar uns clientes.
- Volta mais tarde. Quem sabe o senhor dá sorte?  O senhor tem aplicação conosco?  Tendo, é só telefonar.  Sabia que o nosso banco é o mais informatizado da América Latina? Só perde pra Argentina e pro Chile.  Bom, pra Argentina a gente perde até no futebol, é ou não é? Quá! quá! quá!  Essa foi boa, hein?  Tá vendo aquela senhora entrando ali? Fala com ela.  Boa tarde.

- Por gentileza, me mandaram falar com a senhora.
- Faz favor, entra na fila.
- Mas que fila?! não tem fila nenhuma aqui.
- Puxa, não é que não tem mesmo!  Essa carta aí... isso infelizmente não é comigo não.  Fala com seu Almeida, aquele que tá saindo lá.

- Seu Almeida, ô seu Almeida! Seu Almeida, eu estou com essa carta aqui e queria...
- Olha aí, amigão, agora eu tô saindo pra uma inauguração.  Procura o Abelardo que ele te quebra esse galho. Abelardo, faz favor, atende o meu amigo aqui. Carinho especial com ele, hein, Abelardo, que esse aí é pedra noventa!

- Seu Abelardo, o negócio é o seguinte...
- Fica tranquilo, que eu já vou atender o senhor.  Faz favor de esperar ali na fila.

- A senhora é gerente?  Olha, eu estou aqui há quase uma hora, passando de fila em fila e ninguém me atende.  Precisa ser milionário ou estar armado pra ser atendido?  Eu só queria ...
- O senhor tá armado?!
- Não, eu só queria dizer que...
- Milionário o senhor não é, que se fosse o Almeida já tinha pegado o senhor. Não é falar mal dos colegas não, mas os outros gerentes só querem cliente VIP.  Mas vamos lá, qual o problema?
- É sobre essa carta aqui, falando em cadastro restritivo do SPC, CPC, CADIN, ETC. A senhora pode ver que tem até a palavra “etc”.  É muita ameaça, não é não? CADIN significa o quê?
- “Sr. Astronômio de Oliveira Correia. Rua da Consolação, 27, apartamento 306”. Pois é, Seu Astronômio. O senhor tem que pagar. E não dá pra tirar nem a multa.  Aí quem manda é o cedente.
- Mas eu só queria...
- Eu sei, mas não tem jeito.  Faz favor de entrar na fila do caixa. Aquele ali tá quase vazio, vai depressinha.  E obrigado pela preferência!
- Minha senhora, pelo amor de Deus, me escuta um instante.  Eu só queria dizer que meu nome não é Astronômio e eu nem sei onde fica essa tal Rua da Consolação.  Pra falar a verdade, eu achei esse envelope na rua. Como tem talão de cheques, documentos e essa cobrança... Eu só queria entregar ao banco, pra vocês localizarem o tal do Astrogênio ou que nome tenha esse infeliz!
- Bom, se é assim, o senhor queira desculpar.  Mas pode ficar calmo, aqui tudo se resolve rapidinho.  Aceita um cafezinho?
- Aceito...
- Então, faz favor, entra na fila.                              

sábado, 6 de agosto de 2011

JUÍZO FINAL

O FIM DO MUNDO


Mas sempre o fim do medo chegava antes do fim do mundo


Quem se deu ao trabalho de ir à missa no último domingo, ouviu Jesus falando sobre o fim do mundo e recomendando que estivéssemos atentos, porque “não sabeis quando será o tempo”.
Não quero entrar agora por nenhum caminho transcendente nesta modesta crônica, para a qual, aliás, o fim do mundo está bem próximo. Quando muito, ela viverá por alguns minutos diante dos olhos do eventual leitor, e logo cairá no esquecimento eterno.  É bom que os cronistas não se iludam.  Poucas horas depois de ter nascido, seu precioso texto estará envolvendo um cacho de bananas que maduram, forrando a sola de um sapato velho e furado.  Com muita sorte, o papel será reciclado e aí as belas frases e os nobres sentimentos com que enchemos a folha nada mais serão do que, como no soneto de Machado de Assis, pensamentos idos e vividos.
Mas a leitura do Evangelho (Marcos l3, l4-37) me fez lembrar dos tempos em que eu, criança, tinha mais curiosidade do que medo acerca do fim do mundo.  Naquela época se dizia que “a mil chegarás, de dois mil não passarás”, ameaça que, garantiam os adultos, estava na Bíblia e, portanto, acima de qualquer contestação.  Na minha cabeça infantil, dois mil era coisa distante demais, não dava para avaliar.  Pouco perigoso é o perigo longínquo e, para as crianças, nenhum risco é iminente, nunca há com que se preocupar.   Assim sendo, eu convivia mais ou menos bem com a ideia de fim do mundo e sempre achava que “Juízo Final” seria quando todas as pessoas, afinal, tomassem juízo (pensando bem, não era uma conclusão inteiramente errada).  Verdade que eu me encolhia sob as cobertas nas noites de tempestade, ou quando a falta de energia elétrica deixava tudo escuro.  Mas sempre o fim do medo chegava antes do fim do mundo.
Também procurava me manter na boa amizade dos santos, certo de que havia gente demais na Terra e que, quando ela acabasse, o Senhor iria precisar de ajuda para julgar todo esse povo.  Fechava os olhos e via a multidão esperando para ser julgada.  Deus, sentado no trono, parecia dizer: “Isso hoje está parecendo fila de banco em dia de pagamento do INSS!” De modo que valia a pena manter boas relações com os santos, hábito que ainda hoje cultivo.   Era então muito comum uma gravura em que duas crianças caminhavam à beira do precipício e, embora a ponte fosse apenas uma pinguela rebentada e uma serpente estivesse pronta para dar-lhes o bote, elas nada sofriam, porque eram seguidas pelo Anjo da Guarda, que as protegia.
Eu tinha certeza de que havia um anjo especialmente designado por Deus para me observar, cuidar de mim e, quando chegasse a hora, depor a meu favor ou contra mim.  Sei que os evangélicos criticam muito a crença católica em anjos e santos, mas é confortador pensar que o Universo está repleto de aliados nossos, com os quais Deus talvez queira nos dizer que, se outros conseguiram, nós também podemos conseguir.  Enfim, não vamos discutir quem está com a razão a respeito de como Deus é, age ou pensa.  Chego a achar que Deus ri muito da nossa ignorância a respeito dele.  Ou talvez chore de vez em quando, ao ver que, para nos desentendermos, até ele serve de pretexto.
Não que eu não creia no fim do mundo.  Sei que ele virá para cada um de nós.  Pode ser no ano três mil, pode ser antes, pode ser depois.  Todos juntos, ou cada um na sua hora particular, iremos.  Sem dúvida que iremos.  Mas, como disse Dag Hammarsjold; “Não procure a morte. Ela o encontrará. Procure o caminho que faz da morte um complemento”.













domingo, 24 de julho de 2011

Copa do Mundo de 59

Copa do mundo de 59

... por muito que ele repetisse, seus pupilos não aprendiam mais do que os dois primeiros versos: “Ouviram do Ipiranga as vagens plásticas/ De um povo enoico o prato retufante...”

       Para mim, a mais importante Copa do Mundo foi a de 1959. Os mais apressados dirão que em 59 não houve Copa do Mundo. Bem, se vocês tiverem a boa educação de me deixarem contar a história, vão logo entender do que estou falando.
      A Copa do Mundo de 59 existiu e foi disputada no Morro das Oliveiras. O lugar tinha esse nome por causa de suas primeiras moradoras, as irmãs Tertuliana e Quintiliana Oliveira. O ramo das Oliveiras secou logo e, já em 59, não havia por ali nenhum descendente das pioneiras. Mas o nome ficou.
      Foi Zé Camilo quem teve a idéia de promover o certame, ao qual, modestamente, deu o nome de Copa do Mundo. Para a compra do troféu, também modestamente alcunhado Taça Jules Rimet, muito contribuíram as rãs locais. A molecada desceu do morro para os lamaçais vizinhos, catando desesperadamente as bichinhas, que eram vendidas no Sanatório Naval. Não consta dos anais da Marinha nenhum outro momento em que os tuberculosos tenham comido tanta rã. As mães ficavam de fato bem revoltadas, vendo os filhos chegarem em casa cheios de lama e segurando pelas pontas das perninhas magras aquela saparia nojenta. Mas, enfim, a Jules Rimet foi comprada e colocada em exposição no balcão do botequim Ponto Firme.
      Não vou falar das eliminatórias. Basta dizer que a final foi disputada entre o Real de Madrid (com o D final pronunciado) e o Arranca Toco Foot-ball Club. O Real de Madrid era dirigido pelo competente técnico Copo D’Água, assim chamado porque, dizia-se, há mais de trinta anos não tomava um copo de água, preferindo substituí-la por uma boa dose de cachaça. tanto que, sua equipe vencendo ou perdendo, Copo D’Água terminava os jogos caído atrás da arquibancada, que vinha a ser a cerca entre o gramado e o chiqueiro de porcos do Seu Natalino. O próprio Zé Camilo dirigia o Arranca Toco, além de ser líder comunitário e grande nacionalista. Foi dele a idéia de cantar o Hino Brasileiro antes de cada prélio, o que só não alcançou grande êxito porque, por muito que ele repetisse, seus pupilos não aprendiam mais do que os dois primeiros versos: “Ouviram do Ipiranga as vagens plásticas/ De um povo enóico o prato retufante...”
      O Arranca Toco já entrou em desvantagem, posto que Mirinho, seu goleador, tinha dado uma topada uns dias antes e arrebentado o dedão do pé. Mas, vejam vocês como é o futebol, foi justamente Mirinho que fez o primeiro gol da partida, embora em seguida tenha saído chorando do gramado, deixando atrás de si um rastro de sangue. Bons tempos em que os jogadores tinham amor à camisa! O gol, em si mesmo, foi bem discutível. As balizas consistiam em duas pedras, uma em cada extremidade de meta e, portanto, não havia o travessão superior, o qual era determinado pela imaginação do árbitro e pelo golpe de vista do goleiro. Não faltou, pois, quem achasse que o chute de Mirinho havia passado por cima da trave. Se a altura era problema, já a distância entre uma pedra e outra não causava qualquer conflito: era sempre medida por três passadas de Sete Perna, que, no fim, de tanto andar pelos estádios locais, morro acima, morro abaixo, começou a cobrar uma cachaça por medição. Deu-se, porém, que Sua Senhoria, o juiz, era um ex-policial, recentemente expulso da Polícia Civil e, assim sendo, fez valer a sua autoridade.
      Revoltado, Copo D’Água concentrou sua equipe atrás da moita de capim e de lá voltou com uma bomba: a escalação de Valtuíno. Ora, ora! A média de idade das duas equipes estava em torno de 11 anos e Valtuíno já era quase adulto, até entrava em filme proibido. Ninguém contava com um golpe baixo daqueles, mas, não havendo regras escritas, o árbitro achou que não devia impedir.
      A armação tática das equipes era a mesma: o goleiro embaixo das traves imaginárias, de onde jamais devia sair (havia até um ditado famoso; goleiro na linha, pé na espinha); um beque em cada ponta da área invisível; dois laterais e um meio de campo; cinco atacantes em linha reta. Então, se Valtuíno entrou com a camisa 9, e sendo a marcação homem a homem, cabia a Luiz Perna Seca, camisa 3 da equipe adversária, a tarefa de marcá-lo. Luiz era esmirradinho, mas nem por isso deixou de enfiar o pé entre as canelas de Valtuíno, derrubando-o dentro da área. Pênalti indiscutível.
      O próprio Valtuíno se apresentou para a cobrança, que executou com tamanha violência que o conceituado goleiro arranca-toquense julgou mais prudente sair da frente e deixar a bola entrar direto.
      Entre a primeira pedrada na testa do juiz e a invasão de campo foi, podia-se dizer, um átimo, não fosse essa palavra tão estranha. O fato é que a briga generalizou-se. A gritaria foi tamanha, que não demorou e as mães dos atletas despencaram de suas casas, adentraram o gramado e, cada uma arrastando um craque pela orelha, acabaram com o jogo.
      Dessa forma, o resultado ficou o mesmo em 1 a 1. E parece que, na história do futebol, a Copa do Mundo de 1959 foi até hoje a única que terminou empatada.

Do livro “Um lugar muito lá”

P.S. - Taça Jules Rimet: nome do troféu que, até 1970, era entregue ao vencedor da Copa do Mundo.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

O Capitão é quem manda


Ao menos se ela não usasse aquela blusa transparente!


O capitão é quem manda, isso é um fato.  Ele tinha mandado, o jeito era dizer “Sim senhor, capitão!” Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Sujeito franzino, pernas arqueadas, nem parecia militar. Mas capitão.
-          Soldado, sabe onde eu moro, não sabe?
Sabia. Já tinha ido lá uma vez, primeiro aninho do filho, levar cadeiras e mesas do quartel. Até o jipe do Exército, uma falta de cerimônia.
- Vai lá, que tem umas coisitas para você fazer. Minha mulher te explica.
Falava coisitas, pequetitas, ruazitas. Isso é coisa de homem? E ainda mais capitão do Exército Brasileiro? Qual!
Nunca tinha sido jardineiro, apenas me virava. Soldado cumpre ordens. Em todo caso, quem agora estava no comanda era D. Lúcia. Muito linda. Educada. Não tinha nada de capitão.
Dois dias limpando o jardim. Ela trazia limonada com gelo, biscoitos. Um luxo. Se pudesse, ficava mesmo era de doméstico na casa do capitão.
D. Lúcia usava uns shortinhos assim, deste tamaninho. E ficava de conversa, até atrapalhava o serviço. Ela tão fresquinha, eu suado, me dava vergonha.
- Tira a camisa, o calor está tremendo!
Soldado obedece ao capitão. À mulher do capitão também? Obedeci. Ela me olhou do dedão do pé ao topo da cabeça, parando aqui e ali.
  Terceiro dia de jardineiro, fui buscar uma plantas nos fundos do quintal, ela se ofereceu para ajudar. Minhas mãos seguraram o vaso, as mãos delas seguraram as minhas. Não ajudou nada, muito pelo contrário. Ao menos se ela não usasse aquela blusa transparente!
Estou cavando buracos, ela arrasta uma cadeira e senta na beira do jardim, pernas cruzadas na minha frente. Limonada fresca, bebo de uma virada só, a maior falta de educação. Ela, ao contrário, não tem pressa. Depois de cada gole, lambe os lábios bem devagar.
- Logo hoje a empregada não veio, tanta coisa para fazer! Quando o menino acordar, eu sozinha para tudo! O capitão, esse só volta à noite! Parece casado com o Exército!
Entrou em casa. Voltou meia hora depois, jeito de quem tinha tomado banho. Ficou encostada na porta, me olhando. Larguei a enxada, lavei as mãos na mangueira e subi os degraus da varanda. Ela sorriu com os olhos e eu entrei na casa.
O Capitão é quem manda. Mas a mulher dele também tem alguma autoridade.

Do livro “Menina com flor”

ROBÉRIO JOSÉ CANTO

Robério (a pedido de uma tia, que tinha um amigo com esse nome) José (porque na família todo mundo devia ter nome de santo) Canto (sobrenome que, segundo um entendido em heráldica, é a forma portuguesa do alemão Kant).
Quando nasci, em Nova Friburgo, a Bíblia já havia sido escrita, mas a televisão ainda não existia, pelo menos no bairro que me recebeu.
 Sou (bem) casado. Tenho filhos e filha, netos e netas (como diria Cecília Meireles, minha vida está completa).
  Cursei Letras e lecionei em escolas das redes pública e particular. Antes disso, trabalhei em fábrica e em banco, sem ter elevado a produção industrial brasileira, mas também sem levar à falência o sistema financeiro nacional.
 Durante algum tempo, escrevi crônicas e contos para os jornais Correio Friburguense e A Voz da Serra. Em 2000 perpetrei o livro “Um lugar muito lá”. Com essa chave, abri as portas da Academia Friburguense de Letras, onde me aboletei na cadeira de Alphonsus de Guimarães. Em seguida, vieram “Vento nas casuarinas”, “Menina com flor”, “O infinitivo e outros males”, “Onde dormem as nuvens” e “Toda criança merece ter um bicho”.
Leio de tudo, de bula de remédio a clássicos da literatura universal. Tenho especial predileção pela literatura brasileira e sou bem pouco original na escolha de meus autores preferidos, pois cito sempre o óbvio: Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade e todos os Fernandos Pessoas.
Se tivesse que escolher apenas dois livros para salvar de um incêndio, passaria a mão em “Memórias póstumas de Brás Cubas” e “Grande sertão - veredas”. Era bem capaz de voltar correndo e tentar pegar “Dom Casmurro”. Mas mesmo assim ia lamentar para sempre o muito que ficou para ser lido apenas pelas chamas.
Igual a todo mundo que cedo se deixou conquistar pelo poder das palavras, das imagens e dos sons, gosto de música, de teatro e de cinema. Gosto também de futebol, mas a distância e sem paixão. Apesar disso, concordo com Jean-Jacques Rousseau, para o qual todo ser humano nasce Flamengo, a sociedade é que o deturpa.
Dentre as frases que as leituras cravaram em minha memória, guardo especialmente  uma, de Flaubert: “A palavra humana é como um caldeirão fendido em que batemos melodias para fazer dançar os ursos, quando antes queríamos enternecer as estrelas”.