Em Escrevivendo o leitor-internauta poderá ler, ou reler, contos e crônicas de minha autoria, sobretudo os já publicados nos meus livros: "Um lugar muito lá,", "Vento nas Casuarinas", "Menina com flor", "O infinitivo e outros males", e "Onde dormem as nuvens".
Além desses, publiquei o infantil "Toda criança merece ter um bicho".
A cada duas semanas, um texto será colocado e ficará aberto à leitura, às criticas, às sugestões e, quem sabe, aos elogios dos leitores.

domingo, 4 de novembro de 2012

Dia de chuva e frio

                                  O relógio de ponto continua a bater, segundo a segundo, feito um coração degenerado que se alimentasse não de vida, mas de morte.

      O dia despertou chuvoso e frio. A manhã que se vê do outro lado da vidraça embaçada é feia, úmida e cinza. Não sei o que vocês pensam da chuva. Não da exagerada, de temporal e enchentes, que dessa ninguém gosta mesmo. Mas da chuvinha fina e persistente, que às vezes dura uma semana ou mais, encharca os sapatos, alaga o coração de uma melancolia boba e prolongada como a própria chuva.
      Acho que ninguém morre de amores por um tempo assim. Os comerciantes lamentam que pingue menos dinheiro em suas caixas; os estudantes protestam porque a água não é tanta que justifique a falta às aulas, mas é bastante para umedecer-lhes o uniforme; as mães suspiram diante das pegadas que partem da porta em todas as direções da casa; as lavadeiras contemplam desoladas as roupas que não secam, não secam, meu Deus! As crianças querem sair para jogar bola, para brincar de pique e são obrigadas a inventar com que se divertir dentro de casa mesmo, mas sem sujar nada, sem quebrar nada, sem fazer barulho nenhum, como se, de repente, por inexplicável castigo, tivessem virado adultos. Nos cinemas, pouca gente, os bancos da praça vazios. Das estátuas, escorrem deselegantes fios de água, sem que elas percam a austeridade que as faz estátuas. O rio passa orgulhoso, supondo-se grande coisa, porque inchou um palmo de ontem para hoje.
      A gente acorda e ouve o tamborilar dos pingos que caem metodicamente.
      Num dia desses, quem tem vontade de sair para viver? Num dia como esse, de chuva e frio, era bom que a gente pudesse ficar em casa, como animal no ninho, sem pensar em nada sério, sem pensar no mundo que, à nossa revelia, continua girando feito um pião louco, cuja única função parece ser a de divertir a molecada. Sem pensar em nós mesmos, em nossos dramas pessoais, tão insignificantes dentro do vasto drama humano, mas tão grande em relação à nossa pequenez.
       Bom dia para a gente se meter debaixo das cobertas e ficar olhando figuras imaginárias desenhadas no teto, ouvir um bom disco, ler um bom livro, tomar uns drinques — poucos — sentindo devagar o tão raramente experimentado gosto da bebida. Dormir mais do que o habitual e, se tiver sorte, sonhar com a pessoa amada, crianças brincando, longas planícies, por onde correm cavalos selvagens. Renunciar a todos os planos para salvar o mundo — o que não é fácil-, ou para salvar a si mesmo — o que é mais difícil ainda.
      Da janela, contemplar a gota suicida que percorre longo espaço através da vidraça, até que encontra outra gota, junta-se a ela e se desfaz. Ver os cães que passam de cabeça baixa e ter pena deles, mas uma pena leve, sem sofrimento, que eles próprios parecem felizes — molhados e famintos, mas sem dono. Surpreender-se diante do verde subitamente verde nos morros em frente, lavados folha por folha. Telefonar para amigos, sem ter nada para dizer, apenas porque se gosta deles. Lembrar de uma pessoa que há tanto tempo não vemos e à qual agora amamos como a quem já morreu ou nunca existiu. Escrever uma carta (ainda se escrevem cartas?) para alguém distante, cuja saudade estava guardada num cartão de Natal que resolvemos reler.
      Sim, seria bom... Mas temos que sair para tocar a vida em frente, quando antes queríamos estancar a vida por um dia, para mergulharmos em nós mesmos. O rádio nos informa que é hora de trabalhar, o apito da fábrica soa, indiferente à nossa preguiça, a cidade começa a agitar-se, sem tomar conhecimento dos nossos sonhos, de nossas saudades, de nossas ilusões. O relógio de ponto continua a bater, segundo a segundo, feito um coração degenerado que se alimentasse não de vida, mas de morte. O que nos resta é encarar nossa figura abatida no espelho, enquanto fazemos a barba ou passamos baton. E à medida que nos aprontamos para ir viver uma vida que não queríamos para hoje, ir descobrindo — ou inventando — razões para sair de casa, apesar da chuva e do frio, apesar de nos sentirmos tão melancolicamente filosóficos.
      E ainda que continue chovendo, acreditar no sol, acreditar firmemente no sol. Não há chuva que dure para sempre nem sol que nunca retorne.

Do livro "Vento nas casuarinas"