Em Escrevivendo o leitor-internauta poderá ler, ou reler, contos e crônicas de minha autoria, sobretudo os já publicados nos meus livros: "Um lugar muito lá,", "Vento nas Casuarinas", "Menina com flor", "O infinitivo e outros males", e "Onde dormem as nuvens".
Além desses, publiquei o infantil "Toda criança merece ter um bicho".
A cada duas semanas, um texto será colocado e ficará aberto à leitura, às criticas, às sugestões e, quem sabe, aos elogios dos leitores.

sábado, 23 de março de 2013



Por onde anda Soninha?

Robério José Canto

Conhecia umas tantas Sônias e até teria prazer em tratar algumas delas por Soninha ou coisa ainda mais íntima

         Não tem aquele dia de dormir muito, doze horas seguidas, no mínimo? Pois esse era o dia. Andara dormindo mal ultimamente. Numa noite, criança com dor de barriga; na outra, uma entrevista do ministro do Planejamento concedida à Rede Planeta, naturalmente, garantindo que as novelas continuarão a cores, mas a vida do povo seguirá em preto e branco, mais para preto, aliás. Na véspera mesmo perdera o sono completamente: jantara fora e não conseguira digerir a conta. Enfim, essas coisas que tiram o sono de um homem de bem, que ama seus filhos mesmo nas dores de barriga, tenta acreditar no futuro de sua pátria e janta fora de vez em quando, às custas de um cheque ouro desbotado e um cheque verde em permanente crise ecológica.
        Mas a hora da desforra chegara. Ia dormir como um gato vadio, uma pedra imóvel, um morto vadio e imóvel. Nem tomou banho, que a água, mesmo quente, podia espantar o sono. Soninho que ele embalara o dia inteiro como mãe que embala o frágil recém-nascido. Nem poderia jurar que tivesse escovado os dentes. Assistira ao noticiário na televisão e teve a suprema sorte de contar com um pronunciamento oficial, desses que, quando não provocam pesadelos, são tiro e queda para a insônia mais renitente.
       Ia dormir até as onze. Meio-dia, que fosse. Não tinha a mínima intenção de abrir os olhos. Só se eles se abrissem por conta própria.
         Foi um pouquinho antes das cinco da madrugada que ouviu um trimmmmm prolongado como apito de trem. Estou sonhando, ou melhor, pesadelando, pensou, ainda dormindo. Como o barulho insistisse, fez um sinal com o indicador, dizendo que não estava. Felizmente tinha morrido, consolou-se mentalmente mais adiante. Mas a fera teimava na sala, sem que aparecesse alguém para dar um tiro ou ao menos um pontapé naquele bicho estridente. Afinal pulou da cama, já se perguntando quem teria nascido ou morrido, que são as duas razões pelas quais as pessoas nervosas costumam acordar a gente, como se fosse possível fazer alguma coisa nessas situações literalmente extremas.
         Do outro lado foram logo perguntando se ele era ele mesmo. Ele era ele, sim, admitiu, mas com tanto sono que a resposta saiu meio sem convicção. Se ele conhecia Soninha. Qual delas? perguntou automaticamente, como homem de muitas mulheres (que não era). O cara do outro lado também não sabia. Mas estava acordado e queria saber por onde Soninha andava. Ela dissera, sim, que ia viajar, mas ele não contava que fosse tão de repente, tão sem mas nem porém. Como ela disse que conhecia o senhor... A frase foi cortada por uma exclamação tão sincera quanto espontânea: Mulher dos demônios! Quem sabe o senhor não sabe onde ela está? Tinha que falar com ela urgente, afinal, a situação não podia ficar assim, era preciso conversarem.
         Não fazia idéia nenhuma sobre quem era essa Soninha ou para onde ela se escafedera. Era um homem de família, razoavelmente sério. Conhecia umas tantas Sônias e até teria prazer em tratar algumas delas por Soninha ou coisa ainda mais íntima. Muito lhe agradaria se uma certa Sônia lhe desse satisfações antes de viajar. Soninha? Só minha? Soneca! De outras até tomaria como ameaça qualquer tentativa de maior aproximação. Não, nada sabia a respeito dessa Soninha assim procurada de forma tão aflita em hora tão matutina.
         O telefone do outro lado ficou momentaneamente sem voz, exalou um muito obrigado exangue e desligou. Voltou para a cama, rolou, tapou, destapou, esticou e encolheu: nada de dormir. Às 7 horas fazia a derradeira tentativa: a cabeça enfiada debaixo do travesseiro e o traseiro para cima. Às oito estava diante do espelho fazendo a barba com frieza e precisão. Por trás dos olhos avermelhados, ia se formando um plano infalível para exterminar todas as Soninhas da face da terra. 

Do livro "Um lugar muito lá"