Em Escrevivendo o leitor-internauta poderá ler, ou reler, contos e crônicas de minha autoria, sobretudo os já publicados nos meus livros: "Um lugar muito lá,", "Vento nas Casuarinas", "Menina com flor", "O infinitivo e outros males", e "Onde dormem as nuvens".
Além desses, publiquei o infantil "Toda criança merece ter um bicho".
A cada duas semanas, um texto será colocado e ficará aberto à leitura, às criticas, às sugestões e, quem sabe, aos elogios dos leitores.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Almoço em escola de samba


O diretor social tremeu nas bases. 
Como ser diplomático às 2 da tarde, 
num domingo de fome, sol, cerveja e caipirinha?


            Imagine almoço em escola de samba. Brota aquela fome secular, que vem do tempo da escravidão, percorre todos os cantos do país, atravessa toda a história de um povo em constante estado de inanição. Almoço em escola de samba é fome hereditária, coletiva. Cada um dos desnutridos olha para as caras esfomeadas da mesa ao lado e sente a própria fome crescer na contemplação da fome alheia. De repente, o barracão inteiro é um estômago vazio, são entranhas que roncam furiosas.
            Pois bem, trata-se justamente de um almoço em escola de samba. Domingo de sol, caipirinha e cerveja despencando em cascata desde nove horas e já são quase doze. O objetivo é juntar grana e pagar as costureiras. Só porque no ano passado ficaram no ora-veja, elas agora não querem entregar as fantasias a não ser à vista do dinheiro. No afã de alcançar tão nobre ideal, venderam-se pra mais de 500 convites. O presidente da entidade chegou a nomear um Secretário Extraordinário para Assuntos Gastronômicos. A escolha recaiu sobre um associado que, por mais de 20 anos, administrara um bar famoso pela qualidade de seus salgadinhos. Verdade que cada salgadinho era consumido juntamente com três dedos de cachaça, de modo que teria sido mais prudente relativizar a opinião dos fregueses.
            Mas em nada disso se pensou na hora e o novo diretor logo assumiu o comando da operação, estabelecendo as quantidades de ingredientes necessários para alimentar a multidão. Houve grandes debates a respeito de qual seria o prato do dia. O assunto foi posto em votação, em reunião de diretoria, tendo-se chegado aos seguintes resultados: angu à baiana: 3 votos; feijoada: 4 votos; estrogonofe de carne: 6 votos.
            Vitorioso no pleito democrático, o estrogonofe logo se tornou a grande expectativa do bairro. No dia do evento, bancos, cadeiras e caixotes foram espremidos na quadra, pratos e talheres cada um trouxe os seus, copos eram de papelão. Meio-dia e pouco começa a distribuição do rango. Às 13 horas já o estrogonofe rareava, o arroz encolhia-se no fundo dos panelões. Às treze e trinta de estrogonofe metade do povo só havia sentido o cheiro. O presidente subiu ao palco e pediu paciência à multidão, garantindo que já-já vai sair o melhor estrogonofe que vocês comeram na vida. Enquanto a boia não chegava, o jeito era ir enganando com mais batida e cerveja. Às 14 horas, o povão começou a bater com os talheres no prato e o barulho cresceu tanto que mais parecia um ensaio geral para o desfile.
           A primeira-dama, vendo a sinuca em que o marido estava metido, e lembrando-se do antigo juramento — na alegria e na dor, na saúde e na doença —, tentou falar ao microfone. Mal pronunciara a saudação: “Minha gente amiga...” já do meio da horda veio a resposta: “sai fora pelancuda!”, logo seguida por outra: “Chama o chifrudo do teu marido!” Assustada, a digna senhora retirou-se para os bastidores, onde o alto comando se rendia à evidência de que não tinha como aplacar a sanha da turba famélica.
         Após sucessivas deliberações, em que vários escolhidos declinaram da honraria, o diretor social foi indicado para apaziguar a corja. Antes dele, já abrira mão da incumbência o tesoureiro (“Eu sou cobrador, vou ser mal recebido”), o assessor de imprensa (“Meu coração não vai aguentar tanta emoção”) e o mestre-sala (“Hoje estou completamente afônico”). Mas a vaidade do diretor social não resistiu ao elogio que lhe fizeram: “Você é um diplomata, o homem certo para os momentos de crise!” Assim adulado, lá se foi o homem, pegou o microfone, pediu um minuto da vossa preciosa atenção e pigarreou. Vista do alto do palco, a plebe mais parecia uma assembleia de vampiros, olhos arregalados, os dentes à mostra, fazendo com os talheres o barulho de mil zabumbas.
         O diretor social tremeu nas bases. Como ser diplomático às 2 da tarde, num domingo de fome, sol, cerveja e caipirinha? “Vocês querem estrogonofe?”, perguntou ele, da maneira mais delicada que pode. “Queremos!” rugiu o populacho em resposta. E foi aí que o diretor social mostrou porque tinha adquirido o apelido de Itamarati: “uma coisa é você quiserem, outra coisa e vocês comerem, macacada!”
         O primeiro prato bateu na testa do locutor oficial, o segundo atingiu a porta-bandeira, embora esta tentasse se proteger com uma panela vazia. O resumo da história é o seguinte: as costureiras não receberam, mas a escola também não desfilou. E o presidente até hoje anda querendo saber de sua digna esposa por que o chamaram de chifrudo.


Do livro “Vento nas casuarinas”

Boas respostas


São artistas naquela triste especialidade de que fala o poeta 
grego Arquíloco de Paros:
“Tenho uma grande arte/ Eu firo duramente aqueles que me ferem 


                Famoso ator inglês interpretava Ricardo III e, a certa altura da peça de Shakespeare e da História da Inglaterra, o rei está perdendo a batalha e começa a gritar “Meu reino por um cavalo!”, para que alguém traga a montaria que lhe permita perseguir seu adversário: “Meu reino por um cavalo!” Da plateia, um engraçadinho perguntou: “Um burro serve?” O ator interrompeu a apresentação e respondeu, com fleuma britânica: “Serve. Pode subir”.
               A historinha acima me fez lembrar de uma deputada, também inglesa, que possuía uma língua terrível. Durante comício numa zona rural, um eleitor, querendo insinuar que ela não entendia nada da vida no campo, perguntou-lhe quantos dedos tinha um porco, tendo obtido por resposta esta delicadeza: “Homem, tire as botas e conte!” Pois essa senhora se deu muito mal quando resolveu provocar Winston Churchill, dizendo-lhe: “Se o senhor fosse meu marido, eu lhe dava veneno”. Serenamente, ele retrucou: “Se a senhora fosse minha mulher, eu tomava”.
               No Brasil, Carlos Lacerda deixou fama pela sua eloquência, pela sua capacidade, mas também pela sua dureza com os adversários. Chamado por um deles de “ladrão da honra alheia”, deu uma resposta igualmente impiedosa: “Então o senhor pode dormir tranquilo, pois nada tem que eu lhe possa roubar”. Outro político, Milton Campos, ao contrário, era um manso e, ao morrer, mereceu de Carlos Drummond de Andrade este elogio incomparável: “Foi o homem que todos gostaríamos de ter sido”. Governador de Minas, Mílton Campos recebeu de um secretário a sugestão de que mandasse um trem com soldados para reprimir operários em greve por falta de pagamento. “Não seria melhor mandar um trem com o dinheiro?”, perguntou o governador.
                As pessoas que têm respostas rápidas e inteligentes despertam admiração, mas também um certo temor, pois possuem uma qualidade que pode torná-las cruéis. Assemelham-se às vezes a uma rosa em que o espinho é maior do que a flor. Por uma boa frase, são capazes de sacrificar amizades, envenenar ambientes, machucar seus semelhantes. São artistas naquela triste especialidade de que fala o poeta grego Arquíloco de Paros: “Tenho uma grande arte/ Eu firo duramente aqueles que me ferem”. Ignoram a poética recomendação para que sejam como o sândalo que perfuma o machado que o fere. Esmagam o sândalo e entortam o machado. Nós outros, mortais comuns, reconhecemos a inteligência dessas pessoas, mas não gostamos de viver próximos a elas. Porque é uma lastimável verdade que nem sempre podemos amar a quem admiramos.
              Certa vez alguém me pediu que escrevesse sobre a beleza feminina (a fim de que certa pessoa lesse e se identificasse), mas eu me lembrei do Pe. Antônio Vieira: “Que coisa é a formosura senão uma caveira bem vestida?” e tanto pessimismo me desanimou. Talvez por isso não tenha conseguido atender o pedido, embora seja verdade que, como disse Wyndham Lewis, “Escrever é fácil. Você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto. No meio você coloca as ideias”.
                  Em geral, a dificuldade está justamente em colocar as ideias. Nesse caso, uma solução possível é começar com uma letra maiúscula (digamos um F), e preencher o vazio com frases alheias. O ponto final é fácil, até eu sei fazer, às vezes até exagero, usando um ponto de exclamação. 
                  Ou vários !!!!!!!


Adaptado do livro “Um lugar muito lá!"

terça-feira, 8 de maio de 2012

CONDÔMINOS DA ETERNIDADE

CONDÔMINOS DA ETERNIDADE


O ser humano é capaz de sobreviver a tudo, com exceção da morte. E se alguma coisa sobrevive à morte, há de ser a nossa vaidade.
           
            Saiu publicada nos jornais a convocação dos “senhores condôminos” para assembleia geral dos proprietários de um cemitério. A princípio, pensei que o edital se dirigisse aos próprios moradores locais, como é de costume nas reuniões de condomínio. Mas estranhei que a primeira convocação estivesse prevista para vinte horas e a segunda, para vinte e trinta, “com qualquer número de participantes”. É que, mesmo não sendo autoridade no assunto, na minha adolescência vi filmes de terror o suficiente para saber que os habitantes das cidades dos pés juntos preferem realizar seus encontros de madrugada. Certamente a razão disso é que, no escuro da noite fechada, quando a própria lua tira um cochilo, menos visível fica o estrago que a morte fez na aparência de cada um. Do mesmo modo agem os vivos, que também não gostam de ficar por aí expondo suas feiúras. O ser humano é capaz de sobreviver a tudo, com exceção da morte. E se alguma coisa sobrevive à morte, há de ser a nossa vaidade.
            Não menor espanto me causou saber que o evento estava programado para acontecer no próprio habitat do presidente da Associação. Fiquei me perguntando se o povo que já fixou residência definitiva no Além ainda precisa de associação, com hierarquia e tudo, presidente inclusive.  Podia ter-se dado o caso de o síndico abrir as lápides de sua residência para receber os vizinhos,  mas é bem improvável, visto que as mulheres, mesmo as defuntas, não gostam que os maridos levem para casa assuntos de trabalho.
            Tais foram os fatos que me levaram a refletir sobre o edital e a lê-lo com mais atenção.  Acabei concluindo que a reunião destinava-se aos que por enquanto, e muito provisoriamente, moram do lado de cá. Àqueles que são proprietários de terreno ou túmulo no cemitério, embora ainda não usufruam desse privilégio.  Que tudo neste mundo tem dono sabia eu, desde os três anos, quando me apoderei do pedaço de bolo que um  amiguinho devorava. Foi o que bastou para que ele, convicto de que a propriedade privada é coisa sagrada, me atirasse na cabeça o primeiro objeto que sua mão alcançou, o qual vinha a ser uma imagem de São Francisco de Assis, com pombinhos no ombro e tudo mais a que têm direito as representações desse santo. Logo São Francisco de Assis, tão desapegado dos bens terrenos, se prestar a um papel desses contra mim!
            Mas me surpreendeu saber que até os cemitérios podem ter donos vivos. Não sei se o investimento oferece alta rentabilidade, mas certamente possui algumas vantagens. A principal é que os moradores nunca reclamam, quer do aluguel, quer do atendimento. Bem razão tem aquela agência funerária que incentiva a população a comprar antecipadamente o próprio funeral e já no seu slogan garante a qualidade dos serviços que presta: “Até hoje, nenhum freguês voltou para reclamar!” Quincas berro Dágua, personagem de Jorge Amado, com a autoridade de quem morreu duas vezes, afiançava: “Cada qual cuide de seu enterro, impossível não há”.
            Aliás, a literatura nos ensina várias maneiras de aproveitar a morte.  A melhor talvez seja a de Brás Cubas, que se dá ao luxo da falar o que bem pensa de si e dos outros, porque, conforme diz em suas memórias póstumas, “a franqueza é a primeira virtude de um defunto”, ou ainda: “Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados”.  
            Bocage, poeta português, pedia em soneto: “Deus... ó Deus, quando a morte à luz me roube,/ Ganhe um momento o que perderam anos,/ Saiba morrer o que viver não soube!” Tentemos saber viver e, uma vez que tantas vezes falhamos nessa tarefa vital, ao menos não nos afastemos daquele que é o senhor da vida e da morte, para que seja ele a nos receber quando finalmente nos tornarmos, também nós,  “senhores condôminos” no condomínio da eternidade.
           
Do livro “Onde dormem as nuvens”



HISTÓRIAS DE FUTEBOL - O CARTOLA

Histórias de futebol

I - O cartola

Dois dias depois, estava eu vendo o treino do meu amado Cruz Dourada, quando o sujeito sentou ao meu lado

Levantei para pegar o revólver, mas nem acabei de esticar as pernas, porque não tinha revólver. Como já estava a meio caminho, dei-lhe um sopataço por cima da orelha que o desgraçado voou mais alto do que passarinho assustado. E muito mais ia apanhar se não desse marcha à ré e saísse correndo. De vergonha nenhuma na cara, ainda gritou da porta: “Depois a gente conversa melhor, doutor!” Logo pra mim, que malemale terminei a 3ª série nas mãos de dona Zenilda Damasceno. Mas uma coisa: trinta anos de futebol a limpo. Em muito alambrado tinha eu espremido a cara, acompanhado times pequenos, médios e quase grandes antes de chegar à Federação e ao Departamento de Arbitragem. Dinheiro, do meu bolso. Até aluguel paguei para muito Pelé que vinha salvar o time, deixava a gente na lanterninha e ia embora. Nunca que levei um centavo, deveras. Orgulho, tinha: trinta anos de honesto, eu mesmo não conhecia caso igual. Agora vinha aquele tereré, cheio de dedos: “O doutor merece uma compensação, tantos anos de sacrifícios...” Deve ter ficado uma semana com o ouvido sem funcionar!

Eis porém que se o Timboense chegasse à primeira divisão, eu levava coisa de dez mil dólares. Quando passou a raiva, vi que não era pouco: dava pra tomar uns uísques. Dois dias depois, estava eu vendo o treino do meu amado Cruz Dourada, quando o sujeito sentou ao meu lado. Ao sair, tinha esquecido um embrulho perto de mim. Apanhei o embrulho e fui embora. Achei que era uma safadeza o Timboense ficar de fora. Um timinho tão esforçado bem que merecia uma chance.

Do livro "Um lugar muito lá"

REDAÇÃO INFANTIL

REDAÇÃO INFANTIL


Perguntei ao Tetéo se ele se lembrava de onde a gente estava antes de mamãe ser a mãe da gente

Mamãe é muito boa. Até o pai do Tiago acha. Outro dia eu vi ele olhando pra ela e  falando pro pai do Mateus: “É muito boa essa mulher, hem?!” Aí o pai do Mateus falou assim: “Um avião!” A professora ensinou que um homem chamado Santos du Monte inventou o avião. Se eu fosse inventor, inventava minha mãe, mas Deus inventou ela antes de mim.  Eu acho mamãe boa porque ela faz bolo de chocolate pra mim e quando eu faço xixi na cama ela não conta pra ninguém. Mamãe foi eleita a mãe mais bonita da minha turma. Cada mãe dos meus coleguinhas teve um voto. Mamãe teve dois. Eu estudo na mesma sala do meu irmão gêmeo, o Tetéo. Eu falei com papai que queria casar com vovó. Ele disse: “Você não pode casar com minha mãe!” Não sei por quê. Ele não casou com a minha? Outro dia o Maurinho me chamou de filho da Pluta. Bobo! Eu já ensinei a ele que o nome de mamãe não é Pluta, é Marisa. Ana Luísa tem duas mães. A mãe da semana é casada com o pai da Marta. A mãe da sexta-feira é que é casada com o pai da Ana Luísa. Não sei se é bom ter duas mães. Eu só tenho uma e às vezes ela me dá um tapinha. Eu não choro, que é pra ela não ficar triste, mas ela fica triste assim mesmo e começa a chorar. Depois me dá sorvete de morango. Ontem acordei e fui ao quarto de papai e mamãe.  Eles estavam na cama brincando de brigar. Não sei por que eles tiram a roupa pra brincar. Quando eu quero brincar, eles logo falam: “Primeiro põe a roupa”. Mamãe me ensina muita coisa. Ela me ensinou a palavra nunca. Nunca é entre de manhã e de tarde. De manhã eu perguntei: “Quando você vai me dar um patinete?” Ela falou: “Nunca”. De tarde ela trouxe um patinete pra mim. Papai me falou que quando ele casou com mamãe ela ainda não era minha mãe. Ué, num entendi nada! Como é que pode ela não ter sido sempre minha mãe? “Nem do Teteó?” “Também não”. Perguntei ao Tetéo se ele lembrava de onde a gente estava antes de mamãe ser a mãe da gente. Ele disse que já ouviu mamãe dizer que a gente morava no sonho dela. Tenho vontade de conhecer esse lugar, mas acho que é muito longe. A gente nunca foi lá. A gente vai muito à praia, mas Teteó vomita o carro todo. Mamãe reclama que na praia papai fica o dia inteiro com os amigos e volta pra casa na maior água. Também, com aquela água toda que tem no mar! Semana que vem vou fazer 7 anos. Papai diz que quando eu e Teteó nascemos, mamãe já tinha 30 anos. Agora ela tem 28. A moça da loja perguntou a idade dela, ela falou 28. Tem coisa que eu não entendo. Vovó disse que mamãe vai pedir outro neném a Papai do Céu. Num sei por que ela falou outro. Mamãe já teve neném antes? Eu não me lembro. Se mamãe me perguntasse, eu falava pra ela deixar o neném pra lá e pedir um carro a Papai do Céu, já que o papai aqui de casa diz que não tem dinheiro pra comprar. Às vezes, se Papai do Céu desse o carro, papai mesmo arrumava o neném. Mas adulto é gente complicada, nunca pede opinião. Se papai e mamãe me ouvissem, a vida ficava bem mais fácil aqui em casa!

 Do livro "Onde dormem as nuvens"