I - O cartola
Dois dias depois, estava eu vendo o treino do meu amado Cruz Dourada, quando o sujeito sentou ao meu lado
Levantei para pegar o revólver, mas nem acabei de esticar as pernas, porque não tinha revólver. Como já estava a meio caminho, dei-lhe um sopataço por cima da orelha que o desgraçado voou mais alto do que passarinho assustado. E muito mais ia apanhar se não desse marcha à ré e saísse correndo. De vergonha nenhuma na cara, ainda gritou da porta: “Depois a gente conversa melhor, doutor!” Logo pra mim, que malemale terminei a 3ª série nas mãos de dona Zenilda Damasceno. Mas uma coisa: trinta anos de futebol a limpo. Em muito alambrado tinha eu espremido a cara, acompanhado times pequenos, médios e quase grandes antes de chegar à Federação e ao Departamento de Arbitragem. Dinheiro, do meu bolso. Até aluguel paguei para muito Pelé que vinha salvar o time, deixava a gente na lanterninha e ia embora. Nunca que levei um centavo, deveras. Orgulho, tinha: trinta anos de honesto, eu mesmo não conhecia caso igual. Agora vinha aquele tereré, cheio de dedos: “O doutor merece uma compensação, tantos anos de sacrifícios...” Deve ter ficado uma semana com o ouvido sem funcionar!
Eis porém que se o Timboense chegasse à primeira divisão, eu levava coisa de dez mil dólares. Quando passou a raiva, vi que não era pouco: dava pra tomar uns uísques. Dois dias depois, estava eu vendo o treino do meu amado Cruz Dourada, quando o sujeito sentou ao meu lado. Ao sair, tinha esquecido um embrulho perto de mim. Apanhei o embrulho e fui embora. Achei que era uma safadeza o Timboense ficar de fora. Um timinho tão esforçado bem que merecia uma chance.
Do livro "Um lugar muito lá"
Nenhum comentário:
Postar um comentário