Em Escrevivendo o leitor-internauta poderá ler, ou reler, contos e crônicas de minha autoria, sobretudo os já publicados nos meus livros: "Um lugar muito lá,", "Vento nas Casuarinas", "Menina com flor", "O infinitivo e outros males", e "Onde dormem as nuvens".
Além desses, publiquei o infantil "Toda criança merece ter um bicho".
A cada duas semanas, um texto será colocado e ficará aberto à leitura, às criticas, às sugestões e, quem sabe, aos elogios dos leitores.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O assalto

Não olhava para trás, mas, pelos gritos que ouvia, tinha como certo que se parasse para fungar, uma vez que fosse, seria alcançado pelo porrete.

Eulália Coelho saía do banco certa de que ninguém a assaltaria, apesar da bolsa ostensiva. Sacara todo o dinheiro para comprar dólares e estava vendo o mundo todo verde. Grávida é sagrada. Alguém seria capaz de arrancar-lhe a bolsa que levava sobre a barriga bojuda? Não, dizia ela em sua maternal inocência. Sim, dizia Pé-de-Chinelo, que a vigiava do outro lado da rua. Pé-de-Chinelo era bem capaz disso e de coisa pior. Ainda mais num dia desgraceira daquele, em que só conseguira surrupiar um relógio na banca do camelô, e olhe lá. Todo mundo cheio de cuidados, dificultando-lhe o exercício de sua profissão de assaltante. Enfim, o dia despencava péssimo, até que Pé-de-Chinelo viu Eulália Coelho abrindo a porta do banco, com o ar inocente de uma criança, como se o bebê esperasse a mãe, e não o contrário.
Chinelo, como o tratavam os íntimos, mal passou por Eulália e já estava longe, com a bolsa na mão. Alguém socorre mulher grávida gritando “Ai, meu Deus! Ai, meu Deus!”? Uns não ligaram, outros ficaram com medo, a maioria simplesmente custou a entender o que estava acontecendo. Você seria capaz de correr atrás do ladrão? Pois Monteiro era capaz, tanto que correu. Descendente em linha direta de Dom Quixote, apiedou-se da linda donzela. Meio barrigudo, mas ainda com um restinho do fôlego que esbanjava quando era beque do Arco-Íris Foot-Ball e Regatas, time do Morro da Cruz. Eulália ficou lá atrás, gritando e chorando. Sem brincadeira: parecia que ia ter um filho. As pessoas começaram a se juntar em volta dela.
Monteiro não custou muito a alcançar Pé-de-Chinelo. Quando o ladrão estava à distância de um braço, Monteiro deu-lhe um tamanho soco pelas costas que o infeliz imediatamente cuspiu duas coisas: pelas mãos, a bolsa que tinha roubado; pela boca, um aparelho com três dentes, servicinho de primeira, obra do prático em Odontologia Waldemar Corega. Pé-de-Chinelo aproveitou o impulso do socaço nas costas e pegou novo embalo. Monteiro abaixou e foi catando os objetos espalhados, a começar por dois pacotes de dinheiro. Guardou o batom, a caneta esferográfica, um santinho de Nossa Senhora do Bom Parto. Mas não chegou a juntar os documentos. Lá vinha a pequena, mas furiosa multidão, apontando para ele e gritando: “Olha ali o ladrão! Olha ali o ladrão!” Monteiro ia justamente se explicar quando, com o mesmo olhar de esguelha com que nos tempos do Arco-Íris vigiava dois atacantes ao mesmo tempo, pôde observar que um dos justiceiros trazia nas mãos um pedaço de pau que, numa hora daquelas, bem poderia funcionar como um porrete.
Foi o suficiente para Monteiro compreender que a hora não era boa para diálogos diplomáticos. Levantou-se num salto e saiu correndo como se fosse impedir o gol do adversário em jogo de decisão. Não olhava para trás, mas, pelos gritos que ouvia, tinha como certo que se parasse para fungar, uma vez que fosse, seria alcançado pelo porrete. Ao fim de alguns minutos, constatou que o ar que começava a rarear ao seu redor e não mais lhe chegava aos pulmões.
Nem entendeu o que estava acontecendo quando foi puxado pelo colarinho e caiu num beco estreito, entre duas casas velhas. Ao se levantar, deu de cara com ninguém menos do que Pé-de-Chinelo, em pessoa. O marginal esticou o indicador sobre os lábios, ordenando silêncio. Na calçada, a gritaria denunciava a passagem da milícia popular. Monteiro fez que sim com a cabeça e ficou quieto como uma pedra, mudo como goleiro na hora da cobrança do pênalti.
Pé-de-Chinelo tomou-lhe a bolsa da mão, jogou tudo fora, exceto os dois maços de dinheiro. Sendo, como de fato era, ladrão à moda antiga, homem de justiça e de direito, entregou um dos maços a Monteiro. Com um movimento do queixo, indicou uma saída estreita pelo outro lado.
Cada um enfiou sua grana no bolso e tomou seu rumo.

Do livro “Um lugar muito lá”