Em Escrevivendo o leitor-internauta poderá ler, ou reler, contos e crônicas de minha autoria, sobretudo os já publicados nos meus livros: "Um lugar muito lá,", "Vento nas Casuarinas", "Menina com flor", "O infinitivo e outros males", e "Onde dormem as nuvens".
Além desses, publiquei o infantil "Toda criança merece ter um bicho".
A cada duas semanas, um texto será colocado e ficará aberto à leitura, às criticas, às sugestões e, quem sabe, aos elogios dos leitores.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Um lugar muito lá

Robério  José Canto

Perdemos muito tempo procurando essa joia rara, o que talvez seja uma das causas pelas quais ela nos escapa

     Há um poema que fala da felicidade como um bem que nunca está onde nós estamos, porque nunca nos pomos onde ele está. Creio que é assim. Às vezes faço algumas confusões, penso que estou sendo original e estou apenas citando, às vezes pretendo citar e acabo criando. Certa vez Fernando Sabino foi procurar no dicionário o significado de uma palavra que lhe era estranha. Achou a palavra bem explicadinha, abonada por uma frase, sabe de quem? Pois é: de Fernando Sabino. Esta semana, jogando fora papeis velhos, encontrei um pedaço de folha de caderno, com os seguintes versos: “Que bem te faz essa cor fingida/ no teu cabelo e no teu rosto,/ se tudo é tinta: o mundo, a vida,/ o contentamento e o desgosto?” Fiquei na dúvida se isso era produção minha ou se eu havia copiado de algum livro. Por que diabos eu escreveria coisa assim tão melancólica, se eu nem pinto os cabelos, que vão embranquecendo pelas têmporas. Mas ali estavam os versinhos órfãos, acabei aceitando-lhes a paternidade e só espero que não me apareça agora algum leitor erudito para me tirar essa última ilusão.
     Bom, do que mesmo a gente estava falando? Ah, sim. Pois é. Assim somos nós, seres humanos ou, como disse o velho Camões “bichinho cá na terra tão pequeno”. Vivemos procurando a felicidade em outro lugar, nunca aqui onde estamos. 
(...)
     Perdemos muito tempo procurando essa joia rara, o que talvez seja uma das causas pelas quais ela nos escapa, como um passarinho que voa quando vê a mão que se estica para pegá-lo. Ficássemos quietinhos e talvez o passarinho viesse pousar em nosso ombro. Endurecemos o coração, retesamos os nervos, envenenamos a alma para nos fazermos importantes, para ficarmos acima do próximo. Muitos até conseguem, são admirados, invejados, viram nomes de rua ou capa de revista. Vale a pena? “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”, diz Fernando Pessoa. Mas deve ter a alma bem pequena quem ambiciona uma felicidade assim particular e individual, que se ergue à custa do, ou indiferente ao, sofrimento dos outros.
     “Onde está o teu tesouro, aí está também o teu coração”, ensinou Jesus, mas são tantos os que ignoram os ensinamentos do Rabi! Se acreditarmos em Deus, saberemos que nele está a felicidade verdadeira. Muitos filósofos têm meditado sobre a existência ou não de Deus. Para Heráclito, 500 anos antes de Cristo, Deus era tudo que existia ou, por outra, tudo que existia era Deus. Aristóteles achava que Deus era o “primeiro impulsor”, ou seja, a força que dá origem a todos os movimentos. Plotino tinha-o como um fogo que aquece e ilumina tudo no universo e do qual a alma humana é uma centelha. Angelus Silesius acreditava que “a pequena gota se transforma em mar quando chega até ele; e assim a alma se transforma em Deus quando é nele acolhida”. Aí está, para quem tem fé, a mais perfeita definição do que é felicidade.
     Enquanto não a alcançamos plenamente, vamos criando nossos imperfeitos simulacros. A literatura está cheia desses mundos onde supomos que a felicidade resida, e onde esperamos ir morar também. Thomas Morus inventou a Utopia, Estado ideal, em que todos são felizes. Mas a própria palavra Utopia significa “lugar que não existe”. Manuel Bandeira queria ir embora para Pasárgada, onde era amigo do rei e tinha a mulher que quisesse na cama que escolhesse. Cecília Meireles sonhava com a Ilha do Nanja, e os sonhos de Cecília Meireles eram sempre tão lindos!
     Minha filha Ana Paula, aos cinco anos, falando de um lugar que lhe parecia longe demais, se explicou assim: “Mas é lá, muito lá mesmo...” Eis aí: com relação à felicidade, somos eternas crianças de cinco anos, vivemos quase sempre a buscá-la num lugar muito lá, e raramente compreendemos que ela só pode ser achada no lugar mais aqui que existe: o nosso próprio coração.

Do livro: “Um lugar muito lá”

sábado, 15 de março de 2014

Um pássaro perdido


Um pássaro perdido


Foi a solidão que enxotou do beiral da vida, em busca da morte,
essa andorinha desamparada

         Com a emoção profissional que o caracteriza, o locutor noticia que um jovem — economista, me parece — se atirou do 9º andar de um edifício, tentando suicidar-se. Como na cidade grande são mais ou menos corriqueiras essa e outras variações da arte de sair deste mundo pela porta da autodestruição, o fato não viraria notícia se não fosse porque, condenado a viver, o Ícaro urbano foi cair sobre um veículo que passava pelo local e acabou não morrendo. Duplamente fracassado, ao tentar viver e ao tentar morrer, o infeliz alcança a notoriedade que lhe seria difícil se simplesmente tivesse conseguido o que viera procurar na megalópole: trabalho.
         Vem um rapaz de longe e salta na rodoviária, trazendo na mala, escondidos, algum medo e muita esperança. Um diploma, um nome, um homem. Um a mais, formiga estrangeira no formigueiro febril. O recém-chegado olha e não encontra um sorriso amigo, um olhar solidário, um rosto conhecido. Todos ao redor têm pressa. Homens passam concentrados, preocupados, disparados em busca de dinheiro, de sucesso, de futuro. Estão construindo uma cidade, um país, um mundo e não podem parar e perguntar o nome do moço que chegou agora e traz pouco dinheiro, algum medo e muita esperança.
       Entra em escritórios, em lojas, em grandes, pequenas e médias empresas que, infelizmente, não estão precisando de um economista novato. Por que estudou tanto esse moço que agora toma café sozinho nos bares? Para que viajou tanto se está sozinho no banco da praça, fumando seu cigarro? Que ilusão o trouxe e o deixou sozinho na sala escura do cinema, assistindo a um filme banal? O dinheiro vai secando em seu bolso, como água respingada em solo ressecado. Quer visitar um parente, não tem parente; quer conversar com um amigo, não tem amigo; quer abraçar a amada, mas a amada se desfez em meio à multidão.
        É possível que ele pense em parar qualquer pessoa na rua, apenas para dizer que veio de longe, está sem dinheiro, ninguém o chama pelo nome, não lhe acenam na rua, não lhe dizem boa noite. O que aconteceria se ele nos parasse? Eu o chamaria de tolo, você o acusaria de louco, o mendigo veria nele um possível concorrente, a polícia o julgaria — com alguma razão — um desocupado, as senhoras pensariam tratar-se de um atrevido e começariam a gritar, as crianças se lembrariam dos conselhos das mães para que evitassem os desconhecidos, os jovens concluiriam estar diante de mais um traficante e ninguém acreditaria neste absurdo: é simplesmente um rapaz solitário, procurando um afeto na fascinante capital.
        O estrangeiro está indefeso nas garras do monstro. E desce sobre ele a mais corrosiva das doenças: a imensa, a total solidão. Ser um desconhecido, um anônimo; mais do que um anônimo: um zero à esquerda da multidão. Participar dessa festa, rodopiar ao som dessa música, estar no palco onde se dança esse balé, sem encontrar quem lhe dê a mão e com ele faça par.
        Sem poder voltar fracassado, sem poder ficar vencedor, sobe ao alto de um edifício e vê os carros que passam, as miúdas pessoas lá embaixo, toda uma raça sem rosto. Corações talvez generosos, ocultos em peitos trancados. E então se lança de encontro àquele povo que o recusou, de encontro à morte que, irônica, também o recusa.
     A muitos terá impressionado a coragem ou a loucura desse homem que, sendo economista, esbanja e joga fora sua própria vida. A outros, parecerá extraordinária na história a intervenção do acaso, que pôs um obstáculo entre o corpo suicida e o chão a que ele se destinava. Mas, o mais importante de tudo é, por certo, o isolamento que um ser humano sofreu durante todo o tempo em que tentou sobreviver numa terra estranha.
        Acima de outra força qualquer, foi a solidão que enxotou do beiral da vida, em busca da morte, essa andorinha desamparada e o seu sonho de fazer verão longe de casa.
        Ave, andorinha solidária, cujo voo é para nós dura lição!
        Ave, andorinha solitária, que fura nossa consciência com seu bico frágil!
        Ave, irmão desconhecido!
        Pássaro perdido,
       Ave!

                                                                                                                            Robério José Canto
Do livro “Um lugar muito lá”