Em Escrevivendo o leitor-internauta poderá ler, ou reler, contos e crônicas de minha autoria, sobretudo os já publicados nos meus livros: "Um lugar muito lá,", "Vento nas Casuarinas", "Menina com flor", "O infinitivo e outros males", e "Onde dormem as nuvens".
Além desses, publiquei o infantil "Toda criança merece ter um bicho".
A cada duas semanas, um texto será colocado e ficará aberto à leitura, às criticas, às sugestões e, quem sabe, aos elogios dos leitores.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

O Capitão é quem manda


Ao menos se ela não usasse aquela blusa transparente!


O capitão é quem manda, isso é um fato.  Ele tinha mandado, o jeito era dizer “Sim senhor, capitão!” Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Sujeito franzino, pernas arqueadas, nem parecia militar. Mas capitão.
-          Soldado, sabe onde eu moro, não sabe?
Sabia. Já tinha ido lá uma vez, primeiro aninho do filho, levar cadeiras e mesas do quartel. Até o jipe do Exército, uma falta de cerimônia.
- Vai lá, que tem umas coisitas para você fazer. Minha mulher te explica.
Falava coisitas, pequetitas, ruazitas. Isso é coisa de homem? E ainda mais capitão do Exército Brasileiro? Qual!
Nunca tinha sido jardineiro, apenas me virava. Soldado cumpre ordens. Em todo caso, quem agora estava no comanda era D. Lúcia. Muito linda. Educada. Não tinha nada de capitão.
Dois dias limpando o jardim. Ela trazia limonada com gelo, biscoitos. Um luxo. Se pudesse, ficava mesmo era de doméstico na casa do capitão.
D. Lúcia usava uns shortinhos assim, deste tamaninho. E ficava de conversa, até atrapalhava o serviço. Ela tão fresquinha, eu suado, me dava vergonha.
- Tira a camisa, o calor está tremendo!
Soldado obedece ao capitão. À mulher do capitão também? Obedeci. Ela me olhou do dedão do pé ao topo da cabeça, parando aqui e ali.
  Terceiro dia de jardineiro, fui buscar uma plantas nos fundos do quintal, ela se ofereceu para ajudar. Minhas mãos seguraram o vaso, as mãos delas seguraram as minhas. Não ajudou nada, muito pelo contrário. Ao menos se ela não usasse aquela blusa transparente!
Estou cavando buracos, ela arrasta uma cadeira e senta na beira do jardim, pernas cruzadas na minha frente. Limonada fresca, bebo de uma virada só, a maior falta de educação. Ela, ao contrário, não tem pressa. Depois de cada gole, lambe os lábios bem devagar.
- Logo hoje a empregada não veio, tanta coisa para fazer! Quando o menino acordar, eu sozinha para tudo! O capitão, esse só volta à noite! Parece casado com o Exército!
Entrou em casa. Voltou meia hora depois, jeito de quem tinha tomado banho. Ficou encostada na porta, me olhando. Larguei a enxada, lavei as mãos na mangueira e subi os degraus da varanda. Ela sorriu com os olhos e eu entrei na casa.
O Capitão é quem manda. Mas a mulher dele também tem alguma autoridade.

Do livro “Menina com flor”

ROBÉRIO JOSÉ CANTO

Robério (a pedido de uma tia, que tinha um amigo com esse nome) José (porque na família todo mundo devia ter nome de santo) Canto (sobrenome que, segundo um entendido em heráldica, é a forma portuguesa do alemão Kant).
Quando nasci, em Nova Friburgo, a Bíblia já havia sido escrita, mas a televisão ainda não existia, pelo menos no bairro que me recebeu.
 Sou (bem) casado. Tenho filhos e filha, netos e netas (como diria Cecília Meireles, minha vida está completa).
  Cursei Letras e lecionei em escolas das redes pública e particular. Antes disso, trabalhei em fábrica e em banco, sem ter elevado a produção industrial brasileira, mas também sem levar à falência o sistema financeiro nacional.
 Durante algum tempo, escrevi crônicas e contos para os jornais Correio Friburguense e A Voz da Serra. Em 2000 perpetrei o livro “Um lugar muito lá”. Com essa chave, abri as portas da Academia Friburguense de Letras, onde me aboletei na cadeira de Alphonsus de Guimarães. Em seguida, vieram “Vento nas casuarinas”, “Menina com flor”, “O infinitivo e outros males”, “Onde dormem as nuvens” e “Toda criança merece ter um bicho”.
Leio de tudo, de bula de remédio a clássicos da literatura universal. Tenho especial predileção pela literatura brasileira e sou bem pouco original na escolha de meus autores preferidos, pois cito sempre o óbvio: Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade e todos os Fernandos Pessoas.
Se tivesse que escolher apenas dois livros para salvar de um incêndio, passaria a mão em “Memórias póstumas de Brás Cubas” e “Grande sertão - veredas”. Era bem capaz de voltar correndo e tentar pegar “Dom Casmurro”. Mas mesmo assim ia lamentar para sempre o muito que ficou para ser lido apenas pelas chamas.
Igual a todo mundo que cedo se deixou conquistar pelo poder das palavras, das imagens e dos sons, gosto de música, de teatro e de cinema. Gosto também de futebol, mas a distância e sem paixão. Apesar disso, concordo com Jean-Jacques Rousseau, para o qual todo ser humano nasce Flamengo, a sociedade é que o deturpa.
Dentre as frases que as leituras cravaram em minha memória, guardo especialmente  uma, de Flaubert: “A palavra humana é como um caldeirão fendido em que batemos melodias para fazer dançar os ursos, quando antes queríamos enternecer as estrelas”.