Em Escrevivendo o leitor-internauta poderá ler, ou reler, contos e crônicas de minha autoria, sobretudo os já publicados nos meus livros: "Um lugar muito lá,", "Vento nas Casuarinas", "Menina com flor", "O infinitivo e outros males", e "Onde dormem as nuvens".
Além desses, publiquei o infantil "Toda criança merece ter um bicho".
A cada duas semanas, um texto será colocado e ficará aberto à leitura, às criticas, às sugestões e, quem sabe, aos elogios dos leitores.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Um lugar muito lá

Robério  José Canto

Perdemos muito tempo procurando essa joia rara, o que talvez seja uma das causas pelas quais ela nos escapa

     Há um poema que fala da felicidade como um bem que nunca está onde nós estamos, porque nunca nos pomos onde ele está. Creio que é assim. Às vezes faço algumas confusões, penso que estou sendo original e estou apenas citando, às vezes pretendo citar e acabo criando. Certa vez Fernando Sabino foi procurar no dicionário o significado de uma palavra que lhe era estranha. Achou a palavra bem explicadinha, abonada por uma frase, sabe de quem? Pois é: de Fernando Sabino. Esta semana, jogando fora papeis velhos, encontrei um pedaço de folha de caderno, com os seguintes versos: “Que bem te faz essa cor fingida/ no teu cabelo e no teu rosto,/ se tudo é tinta: o mundo, a vida,/ o contentamento e o desgosto?” Fiquei na dúvida se isso era produção minha ou se eu havia copiado de algum livro. Por que diabos eu escreveria coisa assim tão melancólica, se eu nem pinto os cabelos, que vão embranquecendo pelas têmporas. Mas ali estavam os versinhos órfãos, acabei aceitando-lhes a paternidade e só espero que não me apareça agora algum leitor erudito para me tirar essa última ilusão.
     Bom, do que mesmo a gente estava falando? Ah, sim. Pois é. Assim somos nós, seres humanos ou, como disse o velho Camões “bichinho cá na terra tão pequeno”. Vivemos procurando a felicidade em outro lugar, nunca aqui onde estamos. 
(...)
     Perdemos muito tempo procurando essa joia rara, o que talvez seja uma das causas pelas quais ela nos escapa, como um passarinho que voa quando vê a mão que se estica para pegá-lo. Ficássemos quietinhos e talvez o passarinho viesse pousar em nosso ombro. Endurecemos o coração, retesamos os nervos, envenenamos a alma para nos fazermos importantes, para ficarmos acima do próximo. Muitos até conseguem, são admirados, invejados, viram nomes de rua ou capa de revista. Vale a pena? “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”, diz Fernando Pessoa. Mas deve ter a alma bem pequena quem ambiciona uma felicidade assim particular e individual, que se ergue à custa do, ou indiferente ao, sofrimento dos outros.
     “Onde está o teu tesouro, aí está também o teu coração”, ensinou Jesus, mas são tantos os que ignoram os ensinamentos do Rabi! Se acreditarmos em Deus, saberemos que nele está a felicidade verdadeira. Muitos filósofos têm meditado sobre a existência ou não de Deus. Para Heráclito, 500 anos antes de Cristo, Deus era tudo que existia ou, por outra, tudo que existia era Deus. Aristóteles achava que Deus era o “primeiro impulsor”, ou seja, a força que dá origem a todos os movimentos. Plotino tinha-o como um fogo que aquece e ilumina tudo no universo e do qual a alma humana é uma centelha. Angelus Silesius acreditava que “a pequena gota se transforma em mar quando chega até ele; e assim a alma se transforma em Deus quando é nele acolhida”. Aí está, para quem tem fé, a mais perfeita definição do que é felicidade.
     Enquanto não a alcançamos plenamente, vamos criando nossos imperfeitos simulacros. A literatura está cheia desses mundos onde supomos que a felicidade resida, e onde esperamos ir morar também. Thomas Morus inventou a Utopia, Estado ideal, em que todos são felizes. Mas a própria palavra Utopia significa “lugar que não existe”. Manuel Bandeira queria ir embora para Pasárgada, onde era amigo do rei e tinha a mulher que quisesse na cama que escolhesse. Cecília Meireles sonhava com a Ilha do Nanja, e os sonhos de Cecília Meireles eram sempre tão lindos!
     Minha filha Ana Paula, aos cinco anos, falando de um lugar que lhe parecia longe demais, se explicou assim: “Mas é lá, muito lá mesmo...” Eis aí: com relação à felicidade, somos eternas crianças de cinco anos, vivemos quase sempre a buscá-la num lugar muito lá, e raramente compreendemos que ela só pode ser achada no lugar mais aqui que existe: o nosso próprio coração.

Do livro: “Um lugar muito lá”

sábado, 15 de março de 2014

Um pássaro perdido


Um pássaro perdido


Foi a solidão que enxotou do beiral da vida, em busca da morte,
essa andorinha desamparada

         Com a emoção profissional que o caracteriza, o locutor noticia que um jovem — economista, me parece — se atirou do 9º andar de um edifício, tentando suicidar-se. Como na cidade grande são mais ou menos corriqueiras essa e outras variações da arte de sair deste mundo pela porta da autodestruição, o fato não viraria notícia se não fosse porque, condenado a viver, o Ícaro urbano foi cair sobre um veículo que passava pelo local e acabou não morrendo. Duplamente fracassado, ao tentar viver e ao tentar morrer, o infeliz alcança a notoriedade que lhe seria difícil se simplesmente tivesse conseguido o que viera procurar na megalópole: trabalho.
         Vem um rapaz de longe e salta na rodoviária, trazendo na mala, escondidos, algum medo e muita esperança. Um diploma, um nome, um homem. Um a mais, formiga estrangeira no formigueiro febril. O recém-chegado olha e não encontra um sorriso amigo, um olhar solidário, um rosto conhecido. Todos ao redor têm pressa. Homens passam concentrados, preocupados, disparados em busca de dinheiro, de sucesso, de futuro. Estão construindo uma cidade, um país, um mundo e não podem parar e perguntar o nome do moço que chegou agora e traz pouco dinheiro, algum medo e muita esperança.
       Entra em escritórios, em lojas, em grandes, pequenas e médias empresas que, infelizmente, não estão precisando de um economista novato. Por que estudou tanto esse moço que agora toma café sozinho nos bares? Para que viajou tanto se está sozinho no banco da praça, fumando seu cigarro? Que ilusão o trouxe e o deixou sozinho na sala escura do cinema, assistindo a um filme banal? O dinheiro vai secando em seu bolso, como água respingada em solo ressecado. Quer visitar um parente, não tem parente; quer conversar com um amigo, não tem amigo; quer abraçar a amada, mas a amada se desfez em meio à multidão.
        É possível que ele pense em parar qualquer pessoa na rua, apenas para dizer que veio de longe, está sem dinheiro, ninguém o chama pelo nome, não lhe acenam na rua, não lhe dizem boa noite. O que aconteceria se ele nos parasse? Eu o chamaria de tolo, você o acusaria de louco, o mendigo veria nele um possível concorrente, a polícia o julgaria — com alguma razão — um desocupado, as senhoras pensariam tratar-se de um atrevido e começariam a gritar, as crianças se lembrariam dos conselhos das mães para que evitassem os desconhecidos, os jovens concluiriam estar diante de mais um traficante e ninguém acreditaria neste absurdo: é simplesmente um rapaz solitário, procurando um afeto na fascinante capital.
        O estrangeiro está indefeso nas garras do monstro. E desce sobre ele a mais corrosiva das doenças: a imensa, a total solidão. Ser um desconhecido, um anônimo; mais do que um anônimo: um zero à esquerda da multidão. Participar dessa festa, rodopiar ao som dessa música, estar no palco onde se dança esse balé, sem encontrar quem lhe dê a mão e com ele faça par.
        Sem poder voltar fracassado, sem poder ficar vencedor, sobe ao alto de um edifício e vê os carros que passam, as miúdas pessoas lá embaixo, toda uma raça sem rosto. Corações talvez generosos, ocultos em peitos trancados. E então se lança de encontro àquele povo que o recusou, de encontro à morte que, irônica, também o recusa.
     A muitos terá impressionado a coragem ou a loucura desse homem que, sendo economista, esbanja e joga fora sua própria vida. A outros, parecerá extraordinária na história a intervenção do acaso, que pôs um obstáculo entre o corpo suicida e o chão a que ele se destinava. Mas, o mais importante de tudo é, por certo, o isolamento que um ser humano sofreu durante todo o tempo em que tentou sobreviver numa terra estranha.
        Acima de outra força qualquer, foi a solidão que enxotou do beiral da vida, em busca da morte, essa andorinha desamparada e o seu sonho de fazer verão longe de casa.
        Ave, andorinha solidária, cujo voo é para nós dura lição!
        Ave, andorinha solitária, que fura nossa consciência com seu bico frágil!
        Ave, irmão desconhecido!
        Pássaro perdido,
       Ave!

                                                                                                                            Robério José Canto
Do livro “Um lugar muito lá”

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Banhos e sutiãs

                                                               BANHOS E SUTIÃS

                 Robério José Canto

A vaidade feminina há de achar melhor ter seios reguláveis do que regulares

            Soube de uma novidade de grandes repercussões para a camada de ozônio, que está meio esburacada lá no espaço, e para o meio-ambiente, que anda bem arrasado aqui na Terra mesmo. Tem até gente que acha que se ambiente fosse importante não era meio, era inteiro. De qualquer forma, considero a notícia digna de registro.  E a notícia é que o número de banhos entre os franceses, que antes não passava de dois por semana, tem aumentado.                       Segundo diz a revista, essa transformação se deve à progressiva substituição, naquele país, da banheira pelo chuveiro elétrico. De fato, encher a banheira demanda tempo e paciência, o sujeito acaba mesmo desistindo. Assim, nossos amigos europeus vão se rendendo à tecnologia e às comodidades que ela proporciona, neste caso com grandes benefícios para a pureza do ar. A longo prazo, a mudança pode acarretar inclusive que os franceses percam o interesse pelos perfumes, arma com a qual secularmente vêm compensando a pouca frequência com que se entregam à água e ao sabão.
            Consta que os nossos índios tomavam banho não apenas todo dia, mas o dia todo. Eram quase anfíbios: viviam um tanto na terra e outro tanto nos rios e lagos, mares e lagoas. Os portugueses estranharam esse hábito selvagem de viver se lavando e até sentiam algum enjoo diante do cheiro de limpeza que emanava dos nativos. Mas, tais e tamanhos eram os encantos das índias que não houve Joaquim ou Manuel que não relevasse tanta higiene e com elas se embrenhasse mata a dentro.  Por fim, acabaram eles mesmos se acostumando com o banho diário, coisa que em sua pátria seria considerado um claro sinal de loucura.
            Pensando bem, isso de lavar-se amiúde é coisa de gente atrasada. Um dos meus tios, muito considerado na família por ser homem de invulgar bom-senso, sempre dizia que pessoas limpas não precisavam de mais do que um banho de vez em quando ou, como ele dizia, de longe em longe.  O mesmo pensava um personagem de Graciliano Ramos que, ao ouvir uma senhora manifestar o desejo de tomar banho antes de ir dormir, comentou em surdina: “Moça porca!”
             Outra notícia que li diz respeito não às moças porcas, mas àquelas que são parcas de busto ou assim se julgam. Dizem as estatísticas que mais da metade dos sutiãs vendidos no Brasil já vem com algum tipo de recheio, a fim de socorrer as mulheres mais desprovidas de enchimento próprio. Até agora o truque era feito com algodão ou água. Mas acaba de ser lançado um novo modelo, que poderíamos chamar de "seios reguláveis".  A vaidade feminina há de achar melhor ter seios reguláveis do que regulares. A dita novidade traz como acessório uma pequena bomba de ar. Dessa forma, com umas poucas bombadas, qualquer mulher pode ampliar seus encantos, tornando-se opulenta justamente na região onde a natureza a tratou com sovinice. 
         O sutiã, nos tempos de maior nacionalismo, chamava-se porta-seios. O nome era dos mais adequados, porque já de saída deixava claro a que a peça se destinava. Mas a modernidade varreu a palavra do dia a dia das brasileiras e ela somente sobrevive, a duras penas, nas páginas dos dicionários. Também chegou a supor-se que a transformação dos costumes o tornaria uma peça de museu. Para as feministas mais radicais, a libertação das mulheres passava pela abolição desse símbolo de submissão às preferências dos machos. E, por fim, veio o silicone, levantando o caído, transformando o diminuto em volumoso e em formoso o que era feio. Parecia o último golpe de misericórdia no sutiã.
              A tudo isso ele resistiu. E talvez a sua sobrevivência se deva justamente a essa capacidade de adaptar-se e buscar sempre novas formas de corresponder às fantasias femininas (ou masculinas!). Enfim, o sutiã nunca deixou de ser, para as mulheres, um amigo do peito.  Só faltava inflar ou minguar, conforme o gosto da freguesa. Não falta mais.
        É correr às lojas e aproveitar. O sutiã que enche e esvazia como pneu de bicicleta é uma ilusão, mas o que é a beleza, afinal, senão uma ilusão do olhar? 

Do livro “Onde dormem as nuvens”





domingo, 3 de novembro de 2013

É óbvio!

É óbvio! 

Robério José Canto 

Falar e escrever errado é um dom natural, já se nasce sabendo. 
Duro mesmo é depois aprender o certo. 

           Certa vez, na câmara municipal de uma cidade mineira, um vereador pronunciou a palavra obvio, que, pensando bem, é até mais bonita do que a forma correta: óbvio. Tudo indica que, dentre seus pares, ao menos um queria atazanar-lhe a vida, e tanto assim que logo uma voz o aparteou para denunciar que não se falava obvio, e sim óbvio
          O assunto provocou um dos mais acalorados debates de que se tem notícia naquela honrada casa legislativa. A tal ponto iam os ânimos exaltados que o presidente resolveu colocar o assunto em votação. Antes, porém, Sua Excelência recomendou aos representantes do povo ali reunidos que não se deixassem levar pelas paixões ideológicas ou político-partidárias, mas que analisassem a questão unicamente à luz da sã gramática e do santo dicionário. Democraticamente, obvio obteve a maioria dos votos (o que vem mais uma vez provar que perfeita a democracia não é, ainda que seja a melhor forma de um povo governar-se). Seria precipitado concluir do acontecimento que aqueles homens não estavam à altura do cargo que ocupavam. Tanto estavam que o mais baixo deles tinha um metro e oitenta. Mas não há como negar que escorregaram no óbvio. 
        Esses equívocos acontecem nos melhores parlamentos do mundo. Consta que aqui mesmo em nossa cidade, informado da razão pela qual os preços das mercadorias oscilavam, um vereador propôs “a imediata extinção da cruel lei da oferta e da procura”. Infelizmente só obteve apoio da minoria, e por isso mesmo os preços continuam subindo até hoje. Melhor ainda fez o outro, que discursou contra a Lei da Gravidade. De fato, essa lei traz muitos malefícios à população e para comprovar isso basta tropeçar numa pedra. Tudo cai nesta vida, e só os cirurgiões plásticos tiram vantagens da lei da gravidade, levantando as partes caídas das mulheres. No entanto, pior do que tropeçar numa pedra é tropeçar nas palavras. 
      Eu mesmo estava presente quando um de nossos prefeitos, ao elogiar certa senhora que havia sido sua colega de câmara, a ela se referiu como “minha ex-colega de cama”. Para a Situação, foi um mero equívoco verbal, mas a Oposição, mais chegada à psicanálise, andou falando em ato falho, manifestação do inconsciente e até que a certa senhora não era tão certa assim. 
      Em boca fechada não entra mosquito e quem fala muito, muito erra. Mas como não podemos ficar calados o tempo todo, vivemos correndo riscos. A toda hora precisamos nos decidir entre rubrica e rúbrica, flagrante ou fragrante, onde e aonde. Os dicionários preferem misto, mas mixto é a forma adotada por 10 entre 10 lanchonetes do país. A gente acredita que está indo ao encontro de e, sem querer, vai de encontro a. Tachamos os governantes de tudo quanto é coisa ruim, e eles se vingam nos taxando pelo abuso de vivermos. Só o ar ainda está isento, mas não falta quem ache que os pobres estão exagerando no consumo e que alguma providência precisa ser tomada. Por outro lado, há também exemplos que consolam. Só para citar um: no Rio de Janeiro, dois importantes grupos profissionais entraram em acordo quanto às palavras tráfego e tráfico. A polícia pode tomar conta do tráfego, contanto que não atrapalhe o tráfico dos bandidos. 
        Durante 3 ou 4 anos tive um professor que, especialista em Economia e silabadas, tinha especial predileção por decada. Já naquela época minha ignorância, que não é pequena, não era tamanha que eu não soubesse que devia falar década. E se sobreviveu em minha memória alguma coisa do que esse professor ensinou, foi justamente a palavra decada. Quanto mais fujo dela, mais tenho compulsão de usá-la. Decada está sempre na ponta da minha língua, e é isso que me faz tremer interiormente quando o assunto resvala para períodos de tempo. 
       O fato é que ninguém pode atirar pedras na fala de vidro do vizinho. Falar e escrever errado é um dom natural, já se nasce sabendo. Duro mesmo é depois aprender o certo. E mais não direi porque com certeza tudo isso é óbvio para os leitores. Ou obvio, como queiram. 

Do livro O infinitivo e outros males

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Menina com flor

... aos poucos, vai se tornando apenas um ponto vermelho que brilha lá longe, em forma de coração

      Poucos passos à minha frente, caminhando alegre contra o fino azul deste domingo, lá vai a menininha. A mão esquerda está imobilizada pela manopla paterna, mas a direita baila suavemente no ar, conduzindo uma rosa vaporosa, melindrosa, mais que rosa: vermelha. Um vermelho tão senhor de si que faz todas as cores da manhã convergirem para a pequena mão que o carrega. 
O pai, ocupado com seus infantis pensamentos de adulto, pouco nota na menina que, para poder acompanhá-lo, precisa esticar longamente as pernas, como fazem os soldados nos desfiles militares. A diferença é que ela não leva nenhuma metralhadora ou fuzil, leva uma rosa.
É uma criança pobre, cabelos espetando o ar, uma blusa que já pertenceu a alguma moça formosa, blusa que, agora, sem forma ou formosura, larga demais para sua atual ocupante, lhe cai pelos ombros miúdos Os pés vão contentes, quase aos pulos, contagiados também pela rosa que, lá no alto, brilha no brilho desta manhã de domingo. E as sandálias avançam, orgulhosas e barulhentas – chap! chap!, em direção à casa da menina. 
Ninguém repara na pobreza da dupla, ele não menos mal enfatiotado que ela. Que nos importa? Ver crianças pobres tornou-se para nós coisa tão natural quanto ver o sol nascendo de manhã e as estrelas brilhando à noite. É domingo e, ainda mais, é Dia das Mães. Homem e menina estão vindo das compras, vê-se pela bolsa que ele segura e em cujas bordas debruçam-se talos e folhas. Também atrevidas raízes de aipim põem a cabeça para fora e olham o movimento. 
Da rosa que a menina ostenta pende uma etiqueta colorida. Então é isso: pai e filha ganharam essa flor por terem feito suas humildes compras no supermercado do bairro! E, como hoje é o segundo domingo de maio, o brinde só pode ser uma homenagem às mães. O que nos leva a concluir que a menina vai assim contente e esvoaçante porque, contra todas as expectativas, desta vez sua mãe também vai ganhar um presente. E porque tem um presente para dar, o coração da menina ficou leve como pétala de rosa, suave como carinho de mãe.
A dádiva que lhe chegou às mãos pelas mãos da moça do supermercado é o que lhe faltava par dar a este domingo a doçura dos mais doces domingos. Outras mães poderão ganhar apartamentos ou carros, televisões ou microondas. Algumas ganharão um pente ou um sabonete. Muitas receberão a mesma ingratidão de todos os demais dia do ano. E há tantas que apenas terão indiferença e esquecimento, que são o mais triste de todos os presentes.
Mas a mãe da menina que caminha ali, à minha frente, essa vai receber uma rosa vermelha, ostensivamente vermelha. 
E acontecimento assim maravilhoso põe o brilho do sol nos olhos da menina. E a menina apressa o passo, afasta-se, dilui-se na claridade da manhã e, aos poucos, vai se tornando apenas um ponto vermelho que brilha lá longe, em forma de coração.

Do livro Menina com flor


sexta-feira, 28 de junho de 2013

Uma garrafa

Robério José Canto



Eu vinha apostando comigo que, apesar das velas e das vozes do além, ela não ficaria ali por muito tempo

            O fato é que a fama da gente voa longe. Eu nem gosto de me citar como exemplo, mas sendo o único exemplo que conheço bem, vivo me citando. Então, é o seguinte: eu, por exemplo, até gosto de tomar uma cerveja de vez em quando. Segundo o pessoal aqui de casa, esse “de vem em quando” é mais frequente do que recomenda a sã sobriedade. Apesar das intrigas familiares, posso garantir que bebo moderadamente e, se estiver dirigindo, entrego as chaves do carro para o abstêmio mais próximo.    Também não sou dado a piadas de mau gosto, como dizer que sogra e cerveja são boas apenas quando estão geladas, em cima da mesa.
        E devo admitir que não renego as demais bebidas. Uísque é um caso à parte: só bebo em ocasiões especiais, que são justamente aquelas em que consigo beber uísque, em geral na casa dos outros. Os maridos potencialmente infiéis dizem que a galinha do lado é sempre mais gorda. Eu, que nem olho para o galinheiro do vizinho, costumo dizer que galinha dos outros, para mim, é galo. Portanto, está fora de cogitação. “Cogito, ergo sum” já havia constatado Descartes, talvez querendo dizer que pensando em não pensar na mulher dos outros se vive mais e melhor. Os caminhoneiros acharam um jeito muito objetivo de resumir a questão: “Beijo de mulher casada tem gosto de chumbo”.
        As mulheres casadas entraram nessa história apenas para que eu pudesse concluir que, respeitoso em relação à cônjuge do próximo, mesmo que ele esteja distante, não tenho o mesmo comportamento em se tratando de uísque, que sempre me parece mais gostoso se consumido na casa de parentes e amigos. O que eu queria mesmo dizer é que a fama da gente se espalha rapidamente, sobretudo se for má fama. Porque, sei que vocês vão me dar apoio, o fato de eu ter substituído por um trago o tranquilizante que o médico me recomendou não justifica que me julguem um beberrão. No entanto, essa parece ser a opinião de alguém a meu respeito, visto que largaram uma garrafa de cachaça ao lado do meu portão. Quando saí de casa na manhã de sábado, lá estava ela, lacrada, limpinha. Um conhecedor do assunto, Phd em aguardente e similares, títulos conquistados em anos e anos de bancos de botequins, me afirmou que a branquinha é de boa qualidade. Não direi a marca, que não estou aqui para fazer merchandising gratuito para ninguém.
       Bem, a verdade é que nem provei a birita. Durante três ou quatro dias lá ficou ela, me testando, me provocando. Modéstia à parte, esnobei. De repente, me lembrei de ter visto na esquina algumas velas já apagadas e deduzi que elas e a garrafa haviam composto em arranjo noturno de sexta para sábado. Talvez alguém a tenha apanhado para degustar em casa, ou para dar de presente a um amigo, mas tendo ouvido uma voz sem dono a lhe dizer no escuro “Misifio, deixa isso aí, que isso não é pra tu”, resolveu largá-la logo adiante. Essa conclusão me agrada mais do que pensar que deixaram a malvada no meu portão para insinuar alguma coisa a meu respeito.  Finalmente a garrafa sumiu. Eu vinha apostando comigo que, apesar das velas e das vozes do além, ela não ficaria ali por muito tempo. Durou mais do que eu previa. Na noite de ontem para hoje ela foi levada por algum caboclo, não sei se do outro mundo ou se deste mundo mesmo. Inclino-me pela segunda hipótese e faço votos de que ele a aproveite, devagar e aos poucos. E que ela lhe desça macia, que a própria vida lhe desça macia.
       Este homem — ou espírito, sei lá — fez-me o favor de levar embora um presente que eu não podia aceitar, sob pena de ver confirmada uma fama que eu, se já tenho,não mereço.
Do livro: Vento nas casuarinas

domingo, 5 de maio de 2013

O príncipe e o plebeu


“Ué, doutor, sabe lá se alguma delas é tarada?”


        Não sei a quem pertence a anedota. Poderia contá-la como sendo minha e talvez ninguém desconfiasse. Mas, já ensinava a minha avó, a mentira tem pernas curtas e eu não quero passar vexame. Abraão Lincoln disse que é possível enrolar algumas pessoas por todo o tempo, ou a turma toda por umas horinhas, mas que ninguém consegue enganar o mundo inteiro indefinidamente. A frase de Lincoln talvez seja mais bonita, mas a ideia é essa mesma. Uma amiga me garante que o famoso estadista não teria sido tão peremptório se conhecesse...
        Vamos chamá-la de Castrina Galante. O nome falso tem a vantagem de conservar o segredo que me foi confiado, mas traz também o perigo de deixar muitos maridos com a pulga atrás da orelha. Enfim, melhor uma pulga metafórica atrás da orelha do que um real par de chifres na testa.
       Pois bem, segundo a minha confidente, Castrina Galante trai o marido há mais de trinta anos e ele, a família, a vizinhança e os amigos a consideram uma penca de virtudes, dentre as quais avulta a fidelidade conjugal. Ser mentiroso exige talento e muitas pessoas, seja pela prática constante, seja por inclinação pessoal, ou mais provavelmente pela feliz conjugação dos dois fatores, chegam à perfeição.
       Eu não sou mentiroso (a menos que esteja mentindo). Então, conto o caso, declarando desde já que não sou o autor original. É o seguinte: numa rua do Rio de Janeiro, um operário desentupia bueiros (ou qualquer outra ocupação assim elegante) e era ele próprio um bueiro necessitando de uma boa limpeza. Estava imundo e, como se isso fosse pouca porcaria, sua figura havia se tornado um elenco completo de todas as feiúras que a pobreza é capaz de criar em seu hospedeiro: raros e estragados dentes, cabelos esfarripados, seja lá o que esfarripado possa significar, mãos calosas e feridas. Apesar de todos esses encantos que o transformavam num Corcunda de Notre Dame piorado, ele olhava para todas as mulheres bonitas que passavam e lhes dirigia os maiores elogios. Entre outros galanteios, chamava-as de “caminhão de areia”, o que não é de estranhar, desde que Tom Jobim achou mulher bonita parecida com avião (“Tua beleza é um avião, demais para um pobre coração”). Cada doido com sua mania, mas dentro da realidade que conhece: Tom com o avião, o operário com o caminhão de areia. Segundo Charles Berlitz, os japoneses, para elogiar as mulheres, comparam-nas a “um ovo com olhos”, o que a mim me parece uma coisa bem horrorosa, para dizer o mínimo. Em português, quando algo é de difícil compreensão, se diz que “é grego”. Em espanhol, que “é chinês”, mas em alemão, que “é espanhol”.
       Aqui, devo fazer um parênteses para dizer que já deturpei bastante a história. Que o seu dono me perdoe, mas quem conta um conto aumenta um ponto, diz o ditado. Pois vamos ver como a coisa termina. Lá está o operário — lembra dele? — como um Romeu subterrâneo, emergindo do bueiro e declarando a sua limpa e perfumada admiração às julietas que passam. Um observador, achando descabida a pretensão do Don Juan enlameado, pergunta-lhe se ele acha possível que alguma daquelas gatas dê bola para ele, rato de esgoto. Serenamente, como convém aos sedutores autênticos, ele responde: “Ué, doutor, sabe lá se alguma delas é tarada?”
        Quando esteve no Brasil, o príncipe Charles, então solteiro, impressionou a todos pela elegância com que se portava diante das mulheres, mesmos as mais atraentes. Provocado por uma passista de escola de samba que, seminua, rebolava na sua frente, o herdeiro do trono inglês não desviou os olhos uma vez sequer para as partes mais atraentes daquele furacão que rodopiava, querendo envolvê-lo. Mas, infelizmente, há algo de podre também no reino da Inglaterra, como diria Hamlet. Casado com a linda Diana, Sua Alteza real  teve o mais plebeu dos comportamentos, fazendo coisas que certamente envergonhariam qualquer limpador de bueiros, aqui, na Inglaterra ou na China.
       Qual a moral desta história? Não sei. Talvez seja apenas isso: grandes são as nossas fraquezas e às vezes maiores nos corações onde se podia esperar que houvesse mais fortaleza. Ou, como me explicou um pedreiro-filósofo que trabalhou em minha casa, “assim como são as pessoas, são as criaturas humanas!”

Do livro: Vento nas casuarinas”