Em Escrevivendo o leitor-internauta poderá ler, ou reler, contos e crônicas de minha autoria, sobretudo os já publicados nos meus livros: "Um lugar muito lá,", "Vento nas Casuarinas", "Menina com flor", "O infinitivo e outros males", e "Onde dormem as nuvens".
Além desses, publiquei o infantil "Toda criança merece ter um bicho".
A cada duas semanas, um texto será colocado e ficará aberto à leitura, às criticas, às sugestões e, quem sabe, aos elogios dos leitores.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Banhos e sutiãs

                                                               BANHOS E SUTIÃS

                 Robério José Canto

A vaidade feminina há de achar melhor ter seios reguláveis do que regulares

            Soube de uma novidade de grandes repercussões para a camada de ozônio, que está meio esburacada lá no espaço, e para o meio-ambiente, que anda bem arrasado aqui na Terra mesmo. Tem até gente que acha que se ambiente fosse importante não era meio, era inteiro. De qualquer forma, considero a notícia digna de registro.  E a notícia é que o número de banhos entre os franceses, que antes não passava de dois por semana, tem aumentado.                       Segundo diz a revista, essa transformação se deve à progressiva substituição, naquele país, da banheira pelo chuveiro elétrico. De fato, encher a banheira demanda tempo e paciência, o sujeito acaba mesmo desistindo. Assim, nossos amigos europeus vão se rendendo à tecnologia e às comodidades que ela proporciona, neste caso com grandes benefícios para a pureza do ar. A longo prazo, a mudança pode acarretar inclusive que os franceses percam o interesse pelos perfumes, arma com a qual secularmente vêm compensando a pouca frequência com que se entregam à água e ao sabão.
            Consta que os nossos índios tomavam banho não apenas todo dia, mas o dia todo. Eram quase anfíbios: viviam um tanto na terra e outro tanto nos rios e lagos, mares e lagoas. Os portugueses estranharam esse hábito selvagem de viver se lavando e até sentiam algum enjoo diante do cheiro de limpeza que emanava dos nativos. Mas, tais e tamanhos eram os encantos das índias que não houve Joaquim ou Manuel que não relevasse tanta higiene e com elas se embrenhasse mata a dentro.  Por fim, acabaram eles mesmos se acostumando com o banho diário, coisa que em sua pátria seria considerado um claro sinal de loucura.
            Pensando bem, isso de lavar-se amiúde é coisa de gente atrasada. Um dos meus tios, muito considerado na família por ser homem de invulgar bom-senso, sempre dizia que pessoas limpas não precisavam de mais do que um banho de vez em quando ou, como ele dizia, de longe em longe.  O mesmo pensava um personagem de Graciliano Ramos que, ao ouvir uma senhora manifestar o desejo de tomar banho antes de ir dormir, comentou em surdina: “Moça porca!”
             Outra notícia que li diz respeito não às moças porcas, mas àquelas que são parcas de busto ou assim se julgam. Dizem as estatísticas que mais da metade dos sutiãs vendidos no Brasil já vem com algum tipo de recheio, a fim de socorrer as mulheres mais desprovidas de enchimento próprio. Até agora o truque era feito com algodão ou água. Mas acaba de ser lançado um novo modelo, que poderíamos chamar de "seios reguláveis".  A vaidade feminina há de achar melhor ter seios reguláveis do que regulares. A dita novidade traz como acessório uma pequena bomba de ar. Dessa forma, com umas poucas bombadas, qualquer mulher pode ampliar seus encantos, tornando-se opulenta justamente na região onde a natureza a tratou com sovinice. 
         O sutiã, nos tempos de maior nacionalismo, chamava-se porta-seios. O nome era dos mais adequados, porque já de saída deixava claro a que a peça se destinava. Mas a modernidade varreu a palavra do dia a dia das brasileiras e ela somente sobrevive, a duras penas, nas páginas dos dicionários. Também chegou a supor-se que a transformação dos costumes o tornaria uma peça de museu. Para as feministas mais radicais, a libertação das mulheres passava pela abolição desse símbolo de submissão às preferências dos machos. E, por fim, veio o silicone, levantando o caído, transformando o diminuto em volumoso e em formoso o que era feio. Parecia o último golpe de misericórdia no sutiã.
              A tudo isso ele resistiu. E talvez a sua sobrevivência se deva justamente a essa capacidade de adaptar-se e buscar sempre novas formas de corresponder às fantasias femininas (ou masculinas!). Enfim, o sutiã nunca deixou de ser, para as mulheres, um amigo do peito.  Só faltava inflar ou minguar, conforme o gosto da freguesa. Não falta mais.
        É correr às lojas e aproveitar. O sutiã que enche e esvazia como pneu de bicicleta é uma ilusão, mas o que é a beleza, afinal, senão uma ilusão do olhar? 

Do livro “Onde dormem as nuvens”





domingo, 3 de novembro de 2013

É óbvio!

É óbvio! 

Robério José Canto 

Falar e escrever errado é um dom natural, já se nasce sabendo. 
Duro mesmo é depois aprender o certo. 

           Certa vez, na câmara municipal de uma cidade mineira, um vereador pronunciou a palavra obvio, que, pensando bem, é até mais bonita do que a forma correta: óbvio. Tudo indica que, dentre seus pares, ao menos um queria atazanar-lhe a vida, e tanto assim que logo uma voz o aparteou para denunciar que não se falava obvio, e sim óbvio
          O assunto provocou um dos mais acalorados debates de que se tem notícia naquela honrada casa legislativa. A tal ponto iam os ânimos exaltados que o presidente resolveu colocar o assunto em votação. Antes, porém, Sua Excelência recomendou aos representantes do povo ali reunidos que não se deixassem levar pelas paixões ideológicas ou político-partidárias, mas que analisassem a questão unicamente à luz da sã gramática e do santo dicionário. Democraticamente, obvio obteve a maioria dos votos (o que vem mais uma vez provar que perfeita a democracia não é, ainda que seja a melhor forma de um povo governar-se). Seria precipitado concluir do acontecimento que aqueles homens não estavam à altura do cargo que ocupavam. Tanto estavam que o mais baixo deles tinha um metro e oitenta. Mas não há como negar que escorregaram no óbvio. 
        Esses equívocos acontecem nos melhores parlamentos do mundo. Consta que aqui mesmo em nossa cidade, informado da razão pela qual os preços das mercadorias oscilavam, um vereador propôs “a imediata extinção da cruel lei da oferta e da procura”. Infelizmente só obteve apoio da minoria, e por isso mesmo os preços continuam subindo até hoje. Melhor ainda fez o outro, que discursou contra a Lei da Gravidade. De fato, essa lei traz muitos malefícios à população e para comprovar isso basta tropeçar numa pedra. Tudo cai nesta vida, e só os cirurgiões plásticos tiram vantagens da lei da gravidade, levantando as partes caídas das mulheres. No entanto, pior do que tropeçar numa pedra é tropeçar nas palavras. 
      Eu mesmo estava presente quando um de nossos prefeitos, ao elogiar certa senhora que havia sido sua colega de câmara, a ela se referiu como “minha ex-colega de cama”. Para a Situação, foi um mero equívoco verbal, mas a Oposição, mais chegada à psicanálise, andou falando em ato falho, manifestação do inconsciente e até que a certa senhora não era tão certa assim. 
      Em boca fechada não entra mosquito e quem fala muito, muito erra. Mas como não podemos ficar calados o tempo todo, vivemos correndo riscos. A toda hora precisamos nos decidir entre rubrica e rúbrica, flagrante ou fragrante, onde e aonde. Os dicionários preferem misto, mas mixto é a forma adotada por 10 entre 10 lanchonetes do país. A gente acredita que está indo ao encontro de e, sem querer, vai de encontro a. Tachamos os governantes de tudo quanto é coisa ruim, e eles se vingam nos taxando pelo abuso de vivermos. Só o ar ainda está isento, mas não falta quem ache que os pobres estão exagerando no consumo e que alguma providência precisa ser tomada. Por outro lado, há também exemplos que consolam. Só para citar um: no Rio de Janeiro, dois importantes grupos profissionais entraram em acordo quanto às palavras tráfego e tráfico. A polícia pode tomar conta do tráfego, contanto que não atrapalhe o tráfico dos bandidos. 
        Durante 3 ou 4 anos tive um professor que, especialista em Economia e silabadas, tinha especial predileção por decada. Já naquela época minha ignorância, que não é pequena, não era tamanha que eu não soubesse que devia falar década. E se sobreviveu em minha memória alguma coisa do que esse professor ensinou, foi justamente a palavra decada. Quanto mais fujo dela, mais tenho compulsão de usá-la. Decada está sempre na ponta da minha língua, e é isso que me faz tremer interiormente quando o assunto resvala para períodos de tempo. 
       O fato é que ninguém pode atirar pedras na fala de vidro do vizinho. Falar e escrever errado é um dom natural, já se nasce sabendo. Duro mesmo é depois aprender o certo. E mais não direi porque com certeza tudo isso é óbvio para os leitores. Ou obvio, como queiram. 

Do livro O infinitivo e outros males

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Menina com flor

... aos poucos, vai se tornando apenas um ponto vermelho que brilha lá longe, em forma de coração

      Poucos passos à minha frente, caminhando alegre contra o fino azul deste domingo, lá vai a menininha. A mão esquerda está imobilizada pela manopla paterna, mas a direita baila suavemente no ar, conduzindo uma rosa vaporosa, melindrosa, mais que rosa: vermelha. Um vermelho tão senhor de si que faz todas as cores da manhã convergirem para a pequena mão que o carrega. 
O pai, ocupado com seus infantis pensamentos de adulto, pouco nota na menina que, para poder acompanhá-lo, precisa esticar longamente as pernas, como fazem os soldados nos desfiles militares. A diferença é que ela não leva nenhuma metralhadora ou fuzil, leva uma rosa.
É uma criança pobre, cabelos espetando o ar, uma blusa que já pertenceu a alguma moça formosa, blusa que, agora, sem forma ou formosura, larga demais para sua atual ocupante, lhe cai pelos ombros miúdos Os pés vão contentes, quase aos pulos, contagiados também pela rosa que, lá no alto, brilha no brilho desta manhã de domingo. E as sandálias avançam, orgulhosas e barulhentas – chap! chap!, em direção à casa da menina. 
Ninguém repara na pobreza da dupla, ele não menos mal enfatiotado que ela. Que nos importa? Ver crianças pobres tornou-se para nós coisa tão natural quanto ver o sol nascendo de manhã e as estrelas brilhando à noite. É domingo e, ainda mais, é Dia das Mães. Homem e menina estão vindo das compras, vê-se pela bolsa que ele segura e em cujas bordas debruçam-se talos e folhas. Também atrevidas raízes de aipim põem a cabeça para fora e olham o movimento. 
Da rosa que a menina ostenta pende uma etiqueta colorida. Então é isso: pai e filha ganharam essa flor por terem feito suas humildes compras no supermercado do bairro! E, como hoje é o segundo domingo de maio, o brinde só pode ser uma homenagem às mães. O que nos leva a concluir que a menina vai assim contente e esvoaçante porque, contra todas as expectativas, desta vez sua mãe também vai ganhar um presente. E porque tem um presente para dar, o coração da menina ficou leve como pétala de rosa, suave como carinho de mãe.
A dádiva que lhe chegou às mãos pelas mãos da moça do supermercado é o que lhe faltava par dar a este domingo a doçura dos mais doces domingos. Outras mães poderão ganhar apartamentos ou carros, televisões ou microondas. Algumas ganharão um pente ou um sabonete. Muitas receberão a mesma ingratidão de todos os demais dia do ano. E há tantas que apenas terão indiferença e esquecimento, que são o mais triste de todos os presentes.
Mas a mãe da menina que caminha ali, à minha frente, essa vai receber uma rosa vermelha, ostensivamente vermelha. 
E acontecimento assim maravilhoso põe o brilho do sol nos olhos da menina. E a menina apressa o passo, afasta-se, dilui-se na claridade da manhã e, aos poucos, vai se tornando apenas um ponto vermelho que brilha lá longe, em forma de coração.

Do livro Menina com flor


sexta-feira, 28 de junho de 2013

Uma garrafa

Robério José Canto



Eu vinha apostando comigo que, apesar das velas e das vozes do além, ela não ficaria ali por muito tempo

            O fato é que a fama da gente voa longe. Eu nem gosto de me citar como exemplo, mas sendo o único exemplo que conheço bem, vivo me citando. Então, é o seguinte: eu, por exemplo, até gosto de tomar uma cerveja de vez em quando. Segundo o pessoal aqui de casa, esse “de vem em quando” é mais frequente do que recomenda a sã sobriedade. Apesar das intrigas familiares, posso garantir que bebo moderadamente e, se estiver dirigindo, entrego as chaves do carro para o abstêmio mais próximo.    Também não sou dado a piadas de mau gosto, como dizer que sogra e cerveja são boas apenas quando estão geladas, em cima da mesa.
        E devo admitir que não renego as demais bebidas. Uísque é um caso à parte: só bebo em ocasiões especiais, que são justamente aquelas em que consigo beber uísque, em geral na casa dos outros. Os maridos potencialmente infiéis dizem que a galinha do lado é sempre mais gorda. Eu, que nem olho para o galinheiro do vizinho, costumo dizer que galinha dos outros, para mim, é galo. Portanto, está fora de cogitação. “Cogito, ergo sum” já havia constatado Descartes, talvez querendo dizer que pensando em não pensar na mulher dos outros se vive mais e melhor. Os caminhoneiros acharam um jeito muito objetivo de resumir a questão: “Beijo de mulher casada tem gosto de chumbo”.
        As mulheres casadas entraram nessa história apenas para que eu pudesse concluir que, respeitoso em relação à cônjuge do próximo, mesmo que ele esteja distante, não tenho o mesmo comportamento em se tratando de uísque, que sempre me parece mais gostoso se consumido na casa de parentes e amigos. O que eu queria mesmo dizer é que a fama da gente se espalha rapidamente, sobretudo se for má fama. Porque, sei que vocês vão me dar apoio, o fato de eu ter substituído por um trago o tranquilizante que o médico me recomendou não justifica que me julguem um beberrão. No entanto, essa parece ser a opinião de alguém a meu respeito, visto que largaram uma garrafa de cachaça ao lado do meu portão. Quando saí de casa na manhã de sábado, lá estava ela, lacrada, limpinha. Um conhecedor do assunto, Phd em aguardente e similares, títulos conquistados em anos e anos de bancos de botequins, me afirmou que a branquinha é de boa qualidade. Não direi a marca, que não estou aqui para fazer merchandising gratuito para ninguém.
       Bem, a verdade é que nem provei a birita. Durante três ou quatro dias lá ficou ela, me testando, me provocando. Modéstia à parte, esnobei. De repente, me lembrei de ter visto na esquina algumas velas já apagadas e deduzi que elas e a garrafa haviam composto em arranjo noturno de sexta para sábado. Talvez alguém a tenha apanhado para degustar em casa, ou para dar de presente a um amigo, mas tendo ouvido uma voz sem dono a lhe dizer no escuro “Misifio, deixa isso aí, que isso não é pra tu”, resolveu largá-la logo adiante. Essa conclusão me agrada mais do que pensar que deixaram a malvada no meu portão para insinuar alguma coisa a meu respeito.  Finalmente a garrafa sumiu. Eu vinha apostando comigo que, apesar das velas e das vozes do além, ela não ficaria ali por muito tempo. Durou mais do que eu previa. Na noite de ontem para hoje ela foi levada por algum caboclo, não sei se do outro mundo ou se deste mundo mesmo. Inclino-me pela segunda hipótese e faço votos de que ele a aproveite, devagar e aos poucos. E que ela lhe desça macia, que a própria vida lhe desça macia.
       Este homem — ou espírito, sei lá — fez-me o favor de levar embora um presente que eu não podia aceitar, sob pena de ver confirmada uma fama que eu, se já tenho,não mereço.
Do livro: Vento nas casuarinas

domingo, 5 de maio de 2013

O príncipe e o plebeu


“Ué, doutor, sabe lá se alguma delas é tarada?”


        Não sei a quem pertence a anedota. Poderia contá-la como sendo minha e talvez ninguém desconfiasse. Mas, já ensinava a minha avó, a mentira tem pernas curtas e eu não quero passar vexame. Abraão Lincoln disse que é possível enrolar algumas pessoas por todo o tempo, ou a turma toda por umas horinhas, mas que ninguém consegue enganar o mundo inteiro indefinidamente. A frase de Lincoln talvez seja mais bonita, mas a ideia é essa mesma. Uma amiga me garante que o famoso estadista não teria sido tão peremptório se conhecesse...
        Vamos chamá-la de Castrina Galante. O nome falso tem a vantagem de conservar o segredo que me foi confiado, mas traz também o perigo de deixar muitos maridos com a pulga atrás da orelha. Enfim, melhor uma pulga metafórica atrás da orelha do que um real par de chifres na testa.
       Pois bem, segundo a minha confidente, Castrina Galante trai o marido há mais de trinta anos e ele, a família, a vizinhança e os amigos a consideram uma penca de virtudes, dentre as quais avulta a fidelidade conjugal. Ser mentiroso exige talento e muitas pessoas, seja pela prática constante, seja por inclinação pessoal, ou mais provavelmente pela feliz conjugação dos dois fatores, chegam à perfeição.
       Eu não sou mentiroso (a menos que esteja mentindo). Então, conto o caso, declarando desde já que não sou o autor original. É o seguinte: numa rua do Rio de Janeiro, um operário desentupia bueiros (ou qualquer outra ocupação assim elegante) e era ele próprio um bueiro necessitando de uma boa limpeza. Estava imundo e, como se isso fosse pouca porcaria, sua figura havia se tornado um elenco completo de todas as feiúras que a pobreza é capaz de criar em seu hospedeiro: raros e estragados dentes, cabelos esfarripados, seja lá o que esfarripado possa significar, mãos calosas e feridas. Apesar de todos esses encantos que o transformavam num Corcunda de Notre Dame piorado, ele olhava para todas as mulheres bonitas que passavam e lhes dirigia os maiores elogios. Entre outros galanteios, chamava-as de “caminhão de areia”, o que não é de estranhar, desde que Tom Jobim achou mulher bonita parecida com avião (“Tua beleza é um avião, demais para um pobre coração”). Cada doido com sua mania, mas dentro da realidade que conhece: Tom com o avião, o operário com o caminhão de areia. Segundo Charles Berlitz, os japoneses, para elogiar as mulheres, comparam-nas a “um ovo com olhos”, o que a mim me parece uma coisa bem horrorosa, para dizer o mínimo. Em português, quando algo é de difícil compreensão, se diz que “é grego”. Em espanhol, que “é chinês”, mas em alemão, que “é espanhol”.
       Aqui, devo fazer um parênteses para dizer que já deturpei bastante a história. Que o seu dono me perdoe, mas quem conta um conto aumenta um ponto, diz o ditado. Pois vamos ver como a coisa termina. Lá está o operário — lembra dele? — como um Romeu subterrâneo, emergindo do bueiro e declarando a sua limpa e perfumada admiração às julietas que passam. Um observador, achando descabida a pretensão do Don Juan enlameado, pergunta-lhe se ele acha possível que alguma daquelas gatas dê bola para ele, rato de esgoto. Serenamente, como convém aos sedutores autênticos, ele responde: “Ué, doutor, sabe lá se alguma delas é tarada?”
        Quando esteve no Brasil, o príncipe Charles, então solteiro, impressionou a todos pela elegância com que se portava diante das mulheres, mesmos as mais atraentes. Provocado por uma passista de escola de samba que, seminua, rebolava na sua frente, o herdeiro do trono inglês não desviou os olhos uma vez sequer para as partes mais atraentes daquele furacão que rodopiava, querendo envolvê-lo. Mas, infelizmente, há algo de podre também no reino da Inglaterra, como diria Hamlet. Casado com a linda Diana, Sua Alteza real  teve o mais plebeu dos comportamentos, fazendo coisas que certamente envergonhariam qualquer limpador de bueiros, aqui, na Inglaterra ou na China.
       Qual a moral desta história? Não sei. Talvez seja apenas isso: grandes são as nossas fraquezas e às vezes maiores nos corações onde se podia esperar que houvesse mais fortaleza. Ou, como me explicou um pedreiro-filósofo que trabalhou em minha casa, “assim como são as pessoas, são as criaturas humanas!”

Do livro: Vento nas casuarinas”

sábado, 23 de março de 2013



Por onde anda Soninha?

Robério José Canto

Conhecia umas tantas Sônias e até teria prazer em tratar algumas delas por Soninha ou coisa ainda mais íntima

         Não tem aquele dia de dormir muito, doze horas seguidas, no mínimo? Pois esse era o dia. Andara dormindo mal ultimamente. Numa noite, criança com dor de barriga; na outra, uma entrevista do ministro do Planejamento concedida à Rede Planeta, naturalmente, garantindo que as novelas continuarão a cores, mas a vida do povo seguirá em preto e branco, mais para preto, aliás. Na véspera mesmo perdera o sono completamente: jantara fora e não conseguira digerir a conta. Enfim, essas coisas que tiram o sono de um homem de bem, que ama seus filhos mesmo nas dores de barriga, tenta acreditar no futuro de sua pátria e janta fora de vez em quando, às custas de um cheque ouro desbotado e um cheque verde em permanente crise ecológica.
        Mas a hora da desforra chegara. Ia dormir como um gato vadio, uma pedra imóvel, um morto vadio e imóvel. Nem tomou banho, que a água, mesmo quente, podia espantar o sono. Soninho que ele embalara o dia inteiro como mãe que embala o frágil recém-nascido. Nem poderia jurar que tivesse escovado os dentes. Assistira ao noticiário na televisão e teve a suprema sorte de contar com um pronunciamento oficial, desses que, quando não provocam pesadelos, são tiro e queda para a insônia mais renitente.
       Ia dormir até as onze. Meio-dia, que fosse. Não tinha a mínima intenção de abrir os olhos. Só se eles se abrissem por conta própria.
         Foi um pouquinho antes das cinco da madrugada que ouviu um trimmmmm prolongado como apito de trem. Estou sonhando, ou melhor, pesadelando, pensou, ainda dormindo. Como o barulho insistisse, fez um sinal com o indicador, dizendo que não estava. Felizmente tinha morrido, consolou-se mentalmente mais adiante. Mas a fera teimava na sala, sem que aparecesse alguém para dar um tiro ou ao menos um pontapé naquele bicho estridente. Afinal pulou da cama, já se perguntando quem teria nascido ou morrido, que são as duas razões pelas quais as pessoas nervosas costumam acordar a gente, como se fosse possível fazer alguma coisa nessas situações literalmente extremas.
         Do outro lado foram logo perguntando se ele era ele mesmo. Ele era ele, sim, admitiu, mas com tanto sono que a resposta saiu meio sem convicção. Se ele conhecia Soninha. Qual delas? perguntou automaticamente, como homem de muitas mulheres (que não era). O cara do outro lado também não sabia. Mas estava acordado e queria saber por onde Soninha andava. Ela dissera, sim, que ia viajar, mas ele não contava que fosse tão de repente, tão sem mas nem porém. Como ela disse que conhecia o senhor... A frase foi cortada por uma exclamação tão sincera quanto espontânea: Mulher dos demônios! Quem sabe o senhor não sabe onde ela está? Tinha que falar com ela urgente, afinal, a situação não podia ficar assim, era preciso conversarem.
         Não fazia idéia nenhuma sobre quem era essa Soninha ou para onde ela se escafedera. Era um homem de família, razoavelmente sério. Conhecia umas tantas Sônias e até teria prazer em tratar algumas delas por Soninha ou coisa ainda mais íntima. Muito lhe agradaria se uma certa Sônia lhe desse satisfações antes de viajar. Soninha? Só minha? Soneca! De outras até tomaria como ameaça qualquer tentativa de maior aproximação. Não, nada sabia a respeito dessa Soninha assim procurada de forma tão aflita em hora tão matutina.
         O telefone do outro lado ficou momentaneamente sem voz, exalou um muito obrigado exangue e desligou. Voltou para a cama, rolou, tapou, destapou, esticou e encolheu: nada de dormir. Às 7 horas fazia a derradeira tentativa: a cabeça enfiada debaixo do travesseiro e o traseiro para cima. Às oito estava diante do espelho fazendo a barba com frieza e precisão. Por trás dos olhos avermelhados, ia se formando um plano infalível para exterminar todas as Soninhas da face da terra. 

Do livro "Um lugar muito lá"

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Maneiras de dizer


Robério José Canto

                                            Uma é Pelé, o outro é Fernando Henrique Cardoso, e mais aquele que consegue ser, em dias alternados,
Vera Fischer e Mike Tyson



Foi ali um instantinho e já volta

Pode contar que vai demorar. No Brasil, quando o sujeito diz que vai sair para tomar um cafezinho, sabe-se lá aonde esse cara vai e quando vai voltar, se é que vai voltar. Pior ainda se o paletó ficar abraçado ao encosto da cadeira. Há pessoas que parecem pensar que o paletó as representa muito bem e está capacitado a atender a qualquer um que tenha o mau gosto de procurá-las.
Sei de um caso em que essa história de “foi ali um instantinho e já volta” levou anos para ser concluída. O sujeito saiu para comprar cigarro. O barzinho ficava só a 5 minutos do apartamento. Meia hora depois, a mulher se deu conta de que o marido estava demorando. Uma hora, começou a ficar preocupada. Duas horas, foi ela própria até o bar. O resto do dia gastou em telefonemas para conhecidos, hospitais e polícia. Nada de nada, nunca mais.  Três ou quatro anos depois, um vizinho está em São Paulo e vai assistir a um jogo no Pacaembu. Estádio lotado, não havia espaço nem para tirar a mão do bolso. Alguém ao lado lhe pede para acender o cigarro e …
Nem preciso contar o resto. O leitor e a leitora, inteligentes do jeito que são, já entenderam tudo. Era aquele cidadão que tinha saído de casa um instantinho e nunca mais voltara. “Se eu falasse que ia embora, ela fazia um escândalo. Aí, resolvi sair de fininho…”

Ela é bonitinha

Até ser gentil está ficando difícil. Outro dia conheci uma senhorita, conterrânea dos Sarneys, e lhe disse que ela parecia mesmo maranhense, tendo ela me perguntado o que isso significava. “Moreninha, bonitinha…”, foi o que respondi, achando que estava sendo muito galante.  A moça não entendeu assim e retrucou que “bonitinha é quase feia”.   Não satisfeito de ter dito a primeira besteira, acrescentei a segunda: “Já me disseram que bonitinha é uma feia bem vestida”, do que, louvado seja o bom humor feminino!, a jovem achou graça.
 Portanto, para dirimir qualquer dúvida, passada, presente ou futura, deixo consignado em ata que, quando atribuo a alguém o título de “bonitinha”, estou querendo dizer que: a) essa pessoa pode não ser uma dessas belezas arrebatadoras que enfeitam capas de revistas e telas de televisão; b) também não chega a ser nenhum Corcunda de Notre Dame; c) enfim, está naquele meio termo em que a pessoa pode ser chamada, sem ofensa, de… digamos assim…
...bonitinha.

Não é que eu queira fazer fofoca, não, mas…

          Haja ouvidos e paciência, porque esse prólogo invariavelmente dá início a uma sessão completa de mexericos. Há quem garanta que o disse-me-disse é essencial à sanidade mental das pessoas. Segundo essa teoria, falar mal de alguém, fazer uma intriga, levantar uma suspeita, ao menos de vez em quando, é sinal de equilíbrio e bom senso. E a prova disso é que, nos hospícios, os internos não andam inventando enredos para complicar a vida dos outros. Ao contrário, falam quase exclusivamente de si mesmos: uma é Pelé, o outro é Fernando Henrique Cardoso, e mais aquele que consegue ser, em dias alternados, Vera Fischer e Mike Tyson. Já o pessoal tido como mentalmente são como gosta de uma fofocaria!
  Creio que é de Machado de Assis o conto no qual um falastrão afirma estar certa jovem prometida em casamento a um amigo seu. Infelizmente para ele, o pai da moça estava presente e exige do fofoqueiro o nome do autor daquela calúnia. A seguir, saem os dois à procura do primeiro acusado, que diz ter ouvido a história de um terceiro. E este aponta outro, que nomeia mais outro. A busca parece infindável!   Os dois percorrem vários bairros do Rio, vão a Niterói e voltam, até que chegam ao suposto autor da história. Diante da enfurecida bengala paterna, o homem esclarece: “Mas foi o senhor mesmo que me contou isso!”
         Daí se conclui que fazer fofoca pode ser saudável, mas é também uma arma que frequentemente se volta contra quem a dispara.

Do livro “Menina com flor”

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

‘TÁ MUITO BOM

Robério José Canto

A moça acaba sumindo no meio do povo, como açúcar
que se dissolvesse na massa do bolo.
 

          Os dois respeitáveis senhores viajam lado a lado, mas, pelo visto, não se conhecem.  Cada um vai mais afundado do que o outro, tanto em seus santos pensamentos quanto no assento do ônibus.  De suas idades, diga-se apenas que aparentam estar naquele ponto da caminhada em que se tem mais passado para contar do que futuro para viver.  Também não se pode dizer que estejam caindo aos pedaços e, aliás, um deles leva uma bolsa de compras que muito garoto de 50 anos não conseguiria levantar. O outro é um negro forte, com uns poucos fios de cabelos brancos, mas não parece ter chegado aos 90, embora a sabedoria popular nos afiance que “negro quanto pinta, três vezes trinta” ( talvez hoje nem se use mais essa expressão, que é antiga, do tempo em que sutiã se chamava porta-seios. Tudo muda, envelhece, sai de moda, mesmo as palavras e até, ou sobretudo, as pessoas).
          Um deles vai olhando pela janela o movimento lá fora. De repente, retorna de si para o mundo, e a primeira cara que vê é a do companheiro de banco.  Com um levantar de queixo, mostra-lhe uma jovem que vai passando na calçada.  Trata-se de um belo exemplar da espécie, uma obra-prima da natureza, dessas criaturas em que cada parte do corpo parece estar na medida certa, na mais exata proporção. Tão bonita que o trânsito só não parou para vê-la porque o trânsito já estava parado mesmo há muito tempo.   Então, que melhor programa poderia haver para os passageiros do que contemplá-la, enquanto ela não cometesse o ato cruel e desumano de dobrar a esquina ou de esconder- se numa loja?
           O homem da bolsa de compras, que tinha sido o primeiro a avistá-la, virou-se para o vizinho e comentou, entre religioso e mundano: “Deus é grande... ter feito um monumento desses!”  O negro fez que sim com a cabeça e, ainda que sorrisse, parecia ter uma lágrima  à beira dos olhos: “Não é mais pra nós... a idade... nem é bom pensar nessas coisas”, comentou baixinho, como  se revelasse um doloroso segredo.  Baixou sobre eles uma cumplicidade inocente, como a que deve envolver dois soldados que, em pleno campo de batalha, sentindo-se exaustos de tanto lutar, encostam-se numa velha árvore, jogam as armas no chão e resolvem deixar que outros menos cansados lutem em seu lugar.
           O homem das compras, no entanto, não se entrega inteiramente. “Ainda dá pra olhar, tá muito bom...”, diz ele. O trânsito desengarrafa, o ônibus avança, a moça acaba sumindo no meio do povo, como açúcar que se dissolvesse na massa do bolo.  Não está mais à vista, mas seu gosto permanece.
           E permanece o que tanto pode ser o conformismo otimista quanto o otimismo conformista do velho passageiro: “Ainda dá pra olhar, tá muito bom...” E, já que somos todos passageiros, já que cada geração é apenas um breve momento na eternidade das gerações que se sucedem no Tempo, talvez devamos mesmo aprender a lição de que, apesar dos pesares, ainda tá muito bom... Vale a pena passar pela vida, apenas para ver a vida passar, somente para ver a moça passar.

Do livro: “O infinitivo e outros males”