Em Escrevivendo o leitor-internauta poderá ler, ou reler, contos e crônicas de minha autoria, sobretudo os já publicados nos meus livros: "Um lugar muito lá,", "Vento nas Casuarinas", "Menina com flor", "O infinitivo e outros males", e "Onde dormem as nuvens".
Além desses, publiquei o infantil "Toda criança merece ter um bicho".
A cada duas semanas, um texto será colocado e ficará aberto à leitura, às criticas, às sugestões e, quem sabe, aos elogios dos leitores.

domingo, 3 de novembro de 2013

É óbvio!

É óbvio! 

Robério José Canto 

Falar e escrever errado é um dom natural, já se nasce sabendo. 
Duro mesmo é depois aprender o certo. 

           Certa vez, na câmara municipal de uma cidade mineira, um vereador pronunciou a palavra obvio, que, pensando bem, é até mais bonita do que a forma correta: óbvio. Tudo indica que, dentre seus pares, ao menos um queria atazanar-lhe a vida, e tanto assim que logo uma voz o aparteou para denunciar que não se falava obvio, e sim óbvio
          O assunto provocou um dos mais acalorados debates de que se tem notícia naquela honrada casa legislativa. A tal ponto iam os ânimos exaltados que o presidente resolveu colocar o assunto em votação. Antes, porém, Sua Excelência recomendou aos representantes do povo ali reunidos que não se deixassem levar pelas paixões ideológicas ou político-partidárias, mas que analisassem a questão unicamente à luz da sã gramática e do santo dicionário. Democraticamente, obvio obteve a maioria dos votos (o que vem mais uma vez provar que perfeita a democracia não é, ainda que seja a melhor forma de um povo governar-se). Seria precipitado concluir do acontecimento que aqueles homens não estavam à altura do cargo que ocupavam. Tanto estavam que o mais baixo deles tinha um metro e oitenta. Mas não há como negar que escorregaram no óbvio. 
        Esses equívocos acontecem nos melhores parlamentos do mundo. Consta que aqui mesmo em nossa cidade, informado da razão pela qual os preços das mercadorias oscilavam, um vereador propôs “a imediata extinção da cruel lei da oferta e da procura”. Infelizmente só obteve apoio da minoria, e por isso mesmo os preços continuam subindo até hoje. Melhor ainda fez o outro, que discursou contra a Lei da Gravidade. De fato, essa lei traz muitos malefícios à população e para comprovar isso basta tropeçar numa pedra. Tudo cai nesta vida, e só os cirurgiões plásticos tiram vantagens da lei da gravidade, levantando as partes caídas das mulheres. No entanto, pior do que tropeçar numa pedra é tropeçar nas palavras. 
      Eu mesmo estava presente quando um de nossos prefeitos, ao elogiar certa senhora que havia sido sua colega de câmara, a ela se referiu como “minha ex-colega de cama”. Para a Situação, foi um mero equívoco verbal, mas a Oposição, mais chegada à psicanálise, andou falando em ato falho, manifestação do inconsciente e até que a certa senhora não era tão certa assim. 
      Em boca fechada não entra mosquito e quem fala muito, muito erra. Mas como não podemos ficar calados o tempo todo, vivemos correndo riscos. A toda hora precisamos nos decidir entre rubrica e rúbrica, flagrante ou fragrante, onde e aonde. Os dicionários preferem misto, mas mixto é a forma adotada por 10 entre 10 lanchonetes do país. A gente acredita que está indo ao encontro de e, sem querer, vai de encontro a. Tachamos os governantes de tudo quanto é coisa ruim, e eles se vingam nos taxando pelo abuso de vivermos. Só o ar ainda está isento, mas não falta quem ache que os pobres estão exagerando no consumo e que alguma providência precisa ser tomada. Por outro lado, há também exemplos que consolam. Só para citar um: no Rio de Janeiro, dois importantes grupos profissionais entraram em acordo quanto às palavras tráfego e tráfico. A polícia pode tomar conta do tráfego, contanto que não atrapalhe o tráfico dos bandidos. 
        Durante 3 ou 4 anos tive um professor que, especialista em Economia e silabadas, tinha especial predileção por decada. Já naquela época minha ignorância, que não é pequena, não era tamanha que eu não soubesse que devia falar década. E se sobreviveu em minha memória alguma coisa do que esse professor ensinou, foi justamente a palavra decada. Quanto mais fujo dela, mais tenho compulsão de usá-la. Decada está sempre na ponta da minha língua, e é isso que me faz tremer interiormente quando o assunto resvala para períodos de tempo. 
       O fato é que ninguém pode atirar pedras na fala de vidro do vizinho. Falar e escrever errado é um dom natural, já se nasce sabendo. Duro mesmo é depois aprender o certo. E mais não direi porque com certeza tudo isso é óbvio para os leitores. Ou obvio, como queiram. 

Do livro O infinitivo e outros males