Em Escrevivendo o leitor-internauta poderá ler, ou reler, contos e crônicas de minha autoria, sobretudo os já publicados nos meus livros: "Um lugar muito lá,", "Vento nas Casuarinas", "Menina com flor", "O infinitivo e outros males", e "Onde dormem as nuvens".
Além desses, publiquei o infantil "Toda criança merece ter um bicho".
A cada duas semanas, um texto será colocado e ficará aberto à leitura, às criticas, às sugestões e, quem sabe, aos elogios dos leitores.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O GRANDE MISTÉRIO

O GRANDE MISTÉRIO

Um militar presente ordenou que as crianças se retirassem, a coisa ia ficar feia de se ver, avisou, montado em sua experiência de muitas batalhas nunca disputadas.


      Quando Afonso chegou, já havia dois. Olhos espetados no alto. Os dois como quem espera o aparecimento do carro divino visto pelo profeta Ezequiel, a queda de um disco-voador ou, pelo menos, a vinda do Super-Homem em pessoa. Teve vontade de perguntar o que procuravam no alto do edifício em frente ou nas nuvens, mais adiante. Calou-se, porém, ao perceber a concentração em que estavam os dois. Talvez se tratasse de qualquer coisa estranha de repente surgida no céu, pensou, e resolveu vigiar também.

      Dali a pouco um mulato também parou, com sua pesada pasta. Olhou para o alto e, menos discreto, perguntou: Que que foi? Mas sem dirigir a pergunta a nenhum dos três em particular. O quinto a chegar foi um molecote com uma bandeja de pasteis. O mais certo é que tenha parado para oferecer sua mercadoria, mas logo espichou o pescoço e puxou pela manga do mulato: Quequié? — quis saber. Parece que alguém vai se jogar lá de cima, respondeu o outro, apontando para o edifício, sinceras rugas preocupadas no alto da testa.

      O pequeno vendedor perscrutou as nuvens, cobriu os olhos com as mãos encardidas para protegê-los de um resto de solzinho que se acabava por trás das montanhas e gritou: Olha lá, eu vi! Deve ser um avião, completou uma senhora grávida e grave. Avião rápido assim nunca vi, isso é mais é coisa de marciano, replicou o jornaleiro, que saíra de sua banca e também olhava o céu com ar guerreiro. Diz que houve um crime nos sexto andar, explicava uma adolescente para o senhor de óculos que aportara uns minutos antes. Um baixinho de bigode, com cara de professor, começou a explicar, como quem dá aula: Segundo farta documentação da NASA e outros órgãos ligados às pesquisas espaciais, a existência de objetos voadores não-identificados... mas não concluiu sua lição, porque um vereador lhe tomara o lugar no bolo, valendo-se de sua autoridade legislativa e de algumas cotoveladas.

      Um dos sujeitos que estavam ali antes de Afonso, rapazola com roupa de motoqueiro, nem mexia um músculo, apenas suspirava fundo, os olhos vidrados no infinito. O outro torceu a cabeça para trás e, na condição de observador mais antigo, comunicou à massa reunida à sua volta: Parece que vão tirar o cadáver agora. Ao ouvir isso uma lourinha agarrou-se ao vendedor de pasteis, mas, tendo percebido pelo olfato o erro de pessoa, virou-se para o outro lado e abraçou o namorado, soluçando.

      Alguns estudantes acabaram de encher a calçada, agora toda a tomada de gente, desde a beirada da rua até a entrada da loja, lá atrás. Todo mundo de queixo levantado, cada um querendo ver melhor do que o outro. Um militar presente ordenou que as crianças se retirassem, a coisa ia ficar feia de se ver, avisou, montado em sua experiência de muitas batalhas nunca disputadas. Mas ninguém lhe deu atenção. Até agora não saiu ninguém do prédio, informou uma voz perdida no meio do povo. Um dos estudantes respondeu com ar de desprezo: Só pode ser que a polícia interditou o prédio, né, cara?

      Nesse exato momento, parou em frente um Fusca da polícia, de onde saíram dois guardas. Um disco-voador saindo e entrando atrás das montanhas, o gay Dodozinho se apressou em esclarecer, ciente do direito natural dos dois recém-chegados às informações. Um deles, mal saiu do carro, sentenciou: Que disco, que nada, só pode ser algum avião desgovernado. Soltando fumaça daquele jeito?, atreveu-se a discordar uma estudante.

      Três mendigos, interrompendo a sua faina, vieram verificar com os próprios olhos. Um deles, cego de nascença, queria porque queria apostar que no alto da montanha havia, sim, mas um grupo de excursionistas. De repente acercou-se do grupo um casal de namorados, ambos com o olhar pra lá de Marrakesh e, ainda que mal pudessem levantar as cabeças, acrescentaram sua explicação: Qual é? É tudo estrela caindo, maravilha, beleza pura, gentes! Chuva de estrelas! É agora, a mulher tá saindo! gritou o engraxate. E, de fato, uma senhora acabara de sair do prédio, mas, vendo a multidão em frente, juntou-se a ela e ficou a olhar para o alto. E eu sei de nada! foi tudo que respondeu ao policial que tentou interrogá-la.

      O empurra-empurra era grande. Afonso já estava pensando em desistir quando uma janela se abriu no 5º andar, do outro lado da rua. Apareceu uma jovem na moldura, balançou a mão de um lado para outro, como a dizer que não. O rapaz com roupa de motoqueiro deu um soco no ar, falou um palavrão e foi-se embora. O grupo foi então se dispersando, cada um tomando seu caminho, sem que o disco-voador pousasse, sem que nenhum crime fosse apurado, sem que, afinal, o mundo se acabasse.
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Do livro “Vento nas casuarinas (com o título "O fim do mundo")