Em Escrevivendo o leitor-internauta poderá ler, ou reler, contos e crônicas de minha autoria, sobretudo os já publicados nos meus livros: "Um lugar muito lá,", "Vento nas Casuarinas", "Menina com flor", "O infinitivo e outros males", e "Onde dormem as nuvens".
Além desses, publiquei o infantil "Toda criança merece ter um bicho".
A cada duas semanas, um texto será colocado e ficará aberto à leitura, às criticas, às sugestões e, quem sabe, aos elogios dos leitores.

domingo, 24 de julho de 2011

Copa do Mundo de 59

Copa do mundo de 59

... por muito que ele repetisse, seus pupilos não aprendiam mais do que os dois primeiros versos: “Ouviram do Ipiranga as vagens plásticas/ De um povo enoico o prato retufante...”

       Para mim, a mais importante Copa do Mundo foi a de 1959. Os mais apressados dirão que em 59 não houve Copa do Mundo. Bem, se vocês tiverem a boa educação de me deixarem contar a história, vão logo entender do que estou falando.
      A Copa do Mundo de 59 existiu e foi disputada no Morro das Oliveiras. O lugar tinha esse nome por causa de suas primeiras moradoras, as irmãs Tertuliana e Quintiliana Oliveira. O ramo das Oliveiras secou logo e, já em 59, não havia por ali nenhum descendente das pioneiras. Mas o nome ficou.
      Foi Zé Camilo quem teve a idéia de promover o certame, ao qual, modestamente, deu o nome de Copa do Mundo. Para a compra do troféu, também modestamente alcunhado Taça Jules Rimet, muito contribuíram as rãs locais. A molecada desceu do morro para os lamaçais vizinhos, catando desesperadamente as bichinhas, que eram vendidas no Sanatório Naval. Não consta dos anais da Marinha nenhum outro momento em que os tuberculosos tenham comido tanta rã. As mães ficavam de fato bem revoltadas, vendo os filhos chegarem em casa cheios de lama e segurando pelas pontas das perninhas magras aquela saparia nojenta. Mas, enfim, a Jules Rimet foi comprada e colocada em exposição no balcão do botequim Ponto Firme.
      Não vou falar das eliminatórias. Basta dizer que a final foi disputada entre o Real de Madrid (com o D final pronunciado) e o Arranca Toco Foot-ball Club. O Real de Madrid era dirigido pelo competente técnico Copo D’Água, assim chamado porque, dizia-se, há mais de trinta anos não tomava um copo de água, preferindo substituí-la por uma boa dose de cachaça. tanto que, sua equipe vencendo ou perdendo, Copo D’Água terminava os jogos caído atrás da arquibancada, que vinha a ser a cerca entre o gramado e o chiqueiro de porcos do Seu Natalino. O próprio Zé Camilo dirigia o Arranca Toco, além de ser líder comunitário e grande nacionalista. Foi dele a idéia de cantar o Hino Brasileiro antes de cada prélio, o que só não alcançou grande êxito porque, por muito que ele repetisse, seus pupilos não aprendiam mais do que os dois primeiros versos: “Ouviram do Ipiranga as vagens plásticas/ De um povo enóico o prato retufante...”
      O Arranca Toco já entrou em desvantagem, posto que Mirinho, seu goleador, tinha dado uma topada uns dias antes e arrebentado o dedão do pé. Mas, vejam vocês como é o futebol, foi justamente Mirinho que fez o primeiro gol da partida, embora em seguida tenha saído chorando do gramado, deixando atrás de si um rastro de sangue. Bons tempos em que os jogadores tinham amor à camisa! O gol, em si mesmo, foi bem discutível. As balizas consistiam em duas pedras, uma em cada extremidade de meta e, portanto, não havia o travessão superior, o qual era determinado pela imaginação do árbitro e pelo golpe de vista do goleiro. Não faltou, pois, quem achasse que o chute de Mirinho havia passado por cima da trave. Se a altura era problema, já a distância entre uma pedra e outra não causava qualquer conflito: era sempre medida por três passadas de Sete Perna, que, no fim, de tanto andar pelos estádios locais, morro acima, morro abaixo, começou a cobrar uma cachaça por medição. Deu-se, porém, que Sua Senhoria, o juiz, era um ex-policial, recentemente expulso da Polícia Civil e, assim sendo, fez valer a sua autoridade.
      Revoltado, Copo D’Água concentrou sua equipe atrás da moita de capim e de lá voltou com uma bomba: a escalação de Valtuíno. Ora, ora! A média de idade das duas equipes estava em torno de 11 anos e Valtuíno já era quase adulto, até entrava em filme proibido. Ninguém contava com um golpe baixo daqueles, mas, não havendo regras escritas, o árbitro achou que não devia impedir.
      A armação tática das equipes era a mesma: o goleiro embaixo das traves imaginárias, de onde jamais devia sair (havia até um ditado famoso; goleiro na linha, pé na espinha); um beque em cada ponta da área invisível; dois laterais e um meio de campo; cinco atacantes em linha reta. Então, se Valtuíno entrou com a camisa 9, e sendo a marcação homem a homem, cabia a Luiz Perna Seca, camisa 3 da equipe adversária, a tarefa de marcá-lo. Luiz era esmirradinho, mas nem por isso deixou de enfiar o pé entre as canelas de Valtuíno, derrubando-o dentro da área. Pênalti indiscutível.
      O próprio Valtuíno se apresentou para a cobrança, que executou com tamanha violência que o conceituado goleiro arranca-toquense julgou mais prudente sair da frente e deixar a bola entrar direto.
      Entre a primeira pedrada na testa do juiz e a invasão de campo foi, podia-se dizer, um átimo, não fosse essa palavra tão estranha. O fato é que a briga generalizou-se. A gritaria foi tamanha, que não demorou e as mães dos atletas despencaram de suas casas, adentraram o gramado e, cada uma arrastando um craque pela orelha, acabaram com o jogo.
      Dessa forma, o resultado ficou o mesmo em 1 a 1. E parece que, na história do futebol, a Copa do Mundo de 1959 foi até hoje a única que terminou empatada.

Do livro “Um lugar muito lá”

P.S. - Taça Jules Rimet: nome do troféu que, até 1970, era entregue ao vencedor da Copa do Mundo.