Um pássaro perdido
Foi a solidão que enxotou do beiral da
vida, em busca da morte,
essa andorinha desamparada
Com a emoção profissional que o
caracteriza, o locutor noticia que um jovem — economista, me parece — se atirou
do 9º andar de um edifício, tentando suicidar-se. Como na cidade grande são
mais ou menos corriqueiras essa e outras variações da arte de sair deste mundo
pela porta da autodestruição, o fato não viraria notícia se não fosse porque,
condenado a viver, o Ícaro urbano foi cair sobre um veículo que passava pelo
local e acabou não morrendo. Duplamente fracassado, ao tentar viver e ao tentar
morrer, o infeliz alcança a notoriedade que lhe seria difícil se simplesmente
tivesse conseguido o que viera procurar na megalópole: trabalho.
Vem um rapaz de longe e salta na
rodoviária, trazendo na mala, escondidos, algum medo e muita esperança. Um
diploma, um nome, um homem. Um a mais, formiga estrangeira no formigueiro
febril. O recém-chegado olha e não encontra um sorriso amigo, um olhar
solidário, um rosto conhecido. Todos ao redor têm pressa. Homens passam
concentrados, preocupados, disparados em busca de dinheiro, de sucesso, de
futuro. Estão construindo uma cidade, um país, um mundo e não podem parar e
perguntar o nome do moço que chegou agora e traz pouco dinheiro, algum medo e
muita esperança.
Entra em escritórios, em lojas, em
grandes, pequenas e médias empresas que, infelizmente, não estão precisando de
um economista novato. Por que estudou tanto esse moço que agora toma café sozinho
nos bares? Para que viajou tanto se está sozinho no banco da praça, fumando seu
cigarro? Que ilusão o trouxe e o deixou sozinho na sala escura do cinema,
assistindo a um filme banal? O dinheiro vai secando em seu bolso, como água
respingada em solo ressecado. Quer visitar um parente, não tem parente; quer
conversar com um amigo, não tem amigo; quer abraçar a amada, mas a amada se
desfez em meio à multidão.
É possível que ele pense em parar
qualquer pessoa na rua, apenas para dizer que veio de longe, está sem dinheiro,
ninguém o chama pelo nome, não lhe acenam na rua, não lhe dizem boa noite. O
que aconteceria se ele nos parasse? Eu o chamaria de tolo, você o acusaria de
louco, o mendigo veria nele um possível concorrente, a polícia o julgaria — com
alguma razão — um desocupado, as senhoras pensariam tratar-se de um atrevido e
começariam a gritar, as crianças se lembrariam dos conselhos das mães para que
evitassem os desconhecidos, os jovens concluiriam estar diante de mais um
traficante e ninguém acreditaria neste absurdo: é simplesmente um rapaz
solitário, procurando um afeto na fascinante capital.
O estrangeiro está indefeso nas garras
do monstro. E desce sobre ele a mais corrosiva das doenças: a imensa, a total
solidão. Ser um desconhecido, um anônimo; mais do que um anônimo: um zero à
esquerda da multidão. Participar dessa festa, rodopiar ao som dessa música,
estar no palco onde se dança esse balé, sem encontrar quem lhe dê a mão e com
ele faça par.
Sem poder voltar fracassado, sem poder
ficar vencedor, sobe ao alto de um edifício e vê os carros que passam, as
miúdas pessoas lá embaixo, toda uma raça sem rosto. Corações talvez generosos,
ocultos em peitos trancados. E então se lança de encontro àquele povo que o
recusou, de encontro à morte que, irônica, também o recusa.
A muitos terá impressionado a coragem
ou a loucura desse homem que, sendo economista, esbanja e joga fora sua própria
vida. A outros, parecerá extraordinária na história a intervenção do acaso, que
pôs um obstáculo entre o corpo suicida e o chão a que ele se destinava. Mas, o
mais importante de tudo é, por certo, o isolamento que um ser humano sofreu
durante todo o tempo em que tentou sobreviver numa terra estranha.
Acima de outra força qualquer, foi a
solidão que enxotou do beiral da vida, em busca da morte, essa andorinha
desamparada e o seu sonho de fazer verão longe de casa.
Ave, andorinha solidária, cujo voo é para nós dura lição!
Ave, andorinha solitária, que fura nossa consciência com seu bico frágil!
Ave, irmão desconhecido!
Pássaro perdido,
Ave!
Do livro “Um lugar
muito lá”