Em Escrevivendo o leitor-internauta poderá ler, ou reler, contos e crônicas de minha autoria, sobretudo os já publicados nos meus livros: "Um lugar muito lá,", "Vento nas Casuarinas", "Menina com flor", "O infinitivo e outros males", e "Onde dormem as nuvens".
Além desses, publiquei o infantil "Toda criança merece ter um bicho".
A cada duas semanas, um texto será colocado e ficará aberto à leitura, às criticas, às sugestões e, quem sabe, aos elogios dos leitores.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Uma garrafa

Robério José Canto



Eu vinha apostando comigo que, apesar das velas e das vozes do além, ela não ficaria ali por muito tempo

            O fato é que a fama da gente voa longe. Eu nem gosto de me citar como exemplo, mas sendo o único exemplo que conheço bem, vivo me citando. Então, é o seguinte: eu, por exemplo, até gosto de tomar uma cerveja de vez em quando. Segundo o pessoal aqui de casa, esse “de vem em quando” é mais frequente do que recomenda a sã sobriedade. Apesar das intrigas familiares, posso garantir que bebo moderadamente e, se estiver dirigindo, entrego as chaves do carro para o abstêmio mais próximo.    Também não sou dado a piadas de mau gosto, como dizer que sogra e cerveja são boas apenas quando estão geladas, em cima da mesa.
        E devo admitir que não renego as demais bebidas. Uísque é um caso à parte: só bebo em ocasiões especiais, que são justamente aquelas em que consigo beber uísque, em geral na casa dos outros. Os maridos potencialmente infiéis dizem que a galinha do lado é sempre mais gorda. Eu, que nem olho para o galinheiro do vizinho, costumo dizer que galinha dos outros, para mim, é galo. Portanto, está fora de cogitação. “Cogito, ergo sum” já havia constatado Descartes, talvez querendo dizer que pensando em não pensar na mulher dos outros se vive mais e melhor. Os caminhoneiros acharam um jeito muito objetivo de resumir a questão: “Beijo de mulher casada tem gosto de chumbo”.
        As mulheres casadas entraram nessa história apenas para que eu pudesse concluir que, respeitoso em relação à cônjuge do próximo, mesmo que ele esteja distante, não tenho o mesmo comportamento em se tratando de uísque, que sempre me parece mais gostoso se consumido na casa de parentes e amigos. O que eu queria mesmo dizer é que a fama da gente se espalha rapidamente, sobretudo se for má fama. Porque, sei que vocês vão me dar apoio, o fato de eu ter substituído por um trago o tranquilizante que o médico me recomendou não justifica que me julguem um beberrão. No entanto, essa parece ser a opinião de alguém a meu respeito, visto que largaram uma garrafa de cachaça ao lado do meu portão. Quando saí de casa na manhã de sábado, lá estava ela, lacrada, limpinha. Um conhecedor do assunto, Phd em aguardente e similares, títulos conquistados em anos e anos de bancos de botequins, me afirmou que a branquinha é de boa qualidade. Não direi a marca, que não estou aqui para fazer merchandising gratuito para ninguém.
       Bem, a verdade é que nem provei a birita. Durante três ou quatro dias lá ficou ela, me testando, me provocando. Modéstia à parte, esnobei. De repente, me lembrei de ter visto na esquina algumas velas já apagadas e deduzi que elas e a garrafa haviam composto em arranjo noturno de sexta para sábado. Talvez alguém a tenha apanhado para degustar em casa, ou para dar de presente a um amigo, mas tendo ouvido uma voz sem dono a lhe dizer no escuro “Misifio, deixa isso aí, que isso não é pra tu”, resolveu largá-la logo adiante. Essa conclusão me agrada mais do que pensar que deixaram a malvada no meu portão para insinuar alguma coisa a meu respeito.  Finalmente a garrafa sumiu. Eu vinha apostando comigo que, apesar das velas e das vozes do além, ela não ficaria ali por muito tempo. Durou mais do que eu previa. Na noite de ontem para hoje ela foi levada por algum caboclo, não sei se do outro mundo ou se deste mundo mesmo. Inclino-me pela segunda hipótese e faço votos de que ele a aproveite, devagar e aos poucos. E que ela lhe desça macia, que a própria vida lhe desça macia.
       Este homem — ou espírito, sei lá — fez-me o favor de levar embora um presente que eu não podia aceitar, sob pena de ver confirmada uma fama que eu, se já tenho,não mereço.
Do livro: Vento nas casuarinas

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