Em Escrevivendo o leitor-internauta poderá ler, ou reler, contos e crônicas de minha autoria, sobretudo os já publicados nos meus livros: "Um lugar muito lá,", "Vento nas Casuarinas", "Menina com flor", "O infinitivo e outros males", e "Onde dormem as nuvens".
Além desses, publiquei o infantil "Toda criança merece ter um bicho".
A cada duas semanas, um texto será colocado e ficará aberto à leitura, às criticas, às sugestões e, quem sabe, aos elogios dos leitores.

terça-feira, 8 de maio de 2012

CONDÔMINOS DA ETERNIDADE

CONDÔMINOS DA ETERNIDADE


O ser humano é capaz de sobreviver a tudo, com exceção da morte. E se alguma coisa sobrevive à morte, há de ser a nossa vaidade.
           
            Saiu publicada nos jornais a convocação dos “senhores condôminos” para assembleia geral dos proprietários de um cemitério. A princípio, pensei que o edital se dirigisse aos próprios moradores locais, como é de costume nas reuniões de condomínio. Mas estranhei que a primeira convocação estivesse prevista para vinte horas e a segunda, para vinte e trinta, “com qualquer número de participantes”. É que, mesmo não sendo autoridade no assunto, na minha adolescência vi filmes de terror o suficiente para saber que os habitantes das cidades dos pés juntos preferem realizar seus encontros de madrugada. Certamente a razão disso é que, no escuro da noite fechada, quando a própria lua tira um cochilo, menos visível fica o estrago que a morte fez na aparência de cada um. Do mesmo modo agem os vivos, que também não gostam de ficar por aí expondo suas feiúras. O ser humano é capaz de sobreviver a tudo, com exceção da morte. E se alguma coisa sobrevive à morte, há de ser a nossa vaidade.
            Não menor espanto me causou saber que o evento estava programado para acontecer no próprio habitat do presidente da Associação. Fiquei me perguntando se o povo que já fixou residência definitiva no Além ainda precisa de associação, com hierarquia e tudo, presidente inclusive.  Podia ter-se dado o caso de o síndico abrir as lápides de sua residência para receber os vizinhos,  mas é bem improvável, visto que as mulheres, mesmo as defuntas, não gostam que os maridos levem para casa assuntos de trabalho.
            Tais foram os fatos que me levaram a refletir sobre o edital e a lê-lo com mais atenção.  Acabei concluindo que a reunião destinava-se aos que por enquanto, e muito provisoriamente, moram do lado de cá. Àqueles que são proprietários de terreno ou túmulo no cemitério, embora ainda não usufruam desse privilégio.  Que tudo neste mundo tem dono sabia eu, desde os três anos, quando me apoderei do pedaço de bolo que um  amiguinho devorava. Foi o que bastou para que ele, convicto de que a propriedade privada é coisa sagrada, me atirasse na cabeça o primeiro objeto que sua mão alcançou, o qual vinha a ser uma imagem de São Francisco de Assis, com pombinhos no ombro e tudo mais a que têm direito as representações desse santo. Logo São Francisco de Assis, tão desapegado dos bens terrenos, se prestar a um papel desses contra mim!
            Mas me surpreendeu saber que até os cemitérios podem ter donos vivos. Não sei se o investimento oferece alta rentabilidade, mas certamente possui algumas vantagens. A principal é que os moradores nunca reclamam, quer do aluguel, quer do atendimento. Bem razão tem aquela agência funerária que incentiva a população a comprar antecipadamente o próprio funeral e já no seu slogan garante a qualidade dos serviços que presta: “Até hoje, nenhum freguês voltou para reclamar!” Quincas berro Dágua, personagem de Jorge Amado, com a autoridade de quem morreu duas vezes, afiançava: “Cada qual cuide de seu enterro, impossível não há”.
            Aliás, a literatura nos ensina várias maneiras de aproveitar a morte.  A melhor talvez seja a de Brás Cubas, que se dá ao luxo da falar o que bem pensa de si e dos outros, porque, conforme diz em suas memórias póstumas, “a franqueza é a primeira virtude de um defunto”, ou ainda: “Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados”.  
            Bocage, poeta português, pedia em soneto: “Deus... ó Deus, quando a morte à luz me roube,/ Ganhe um momento o que perderam anos,/ Saiba morrer o que viver não soube!” Tentemos saber viver e, uma vez que tantas vezes falhamos nessa tarefa vital, ao menos não nos afastemos daquele que é o senhor da vida e da morte, para que seja ele a nos receber quando finalmente nos tornarmos, também nós,  “senhores condôminos” no condomínio da eternidade.
           
Do livro “Onde dormem as nuvens”



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